Ingá (PB) mostra toda a força e renascimento de uma região em torno do algodão orgânico
(ABERTURA) Foto: Wellington Jan/Divulgação
Já ouviram aquele velho ditado de que não se constrói nada sozinho, não é?! Pois o Dia de Campo, realizado no dia 12 de setembro na cidade de Ingá, no sertão da Paraíba, onde está localizado um importante sítio arqueológico, foi um exemplo perfeito disso.
Em sua 2ª edição (a primeira foi em 2021), o evento, que este ano foi patrocinado pelo Banco do Nordeste, reuniu agricultores, quilombolas, empresários, autoridades e jornalistas para promover a retomada da cultura do algodão na cidade. A região, que foi uma das primeiras a ter sua cotonicultura arrasada pela praga do bicudo nos anos 1980, em uma prova de resiliência, aprendizado e confiança, está começando a se reerguer com a aposta no algodão orgânico, tanto o de pluma branca quanto a que nasce colorida naturalmente. Mas, dessa vez, por meio da agricultura agroecológica e familiar, mesclando a plantação de fava, milho, feijão e sorgo, tudo para alimentação própria e, de quebra, oferecendo uma barreira de proteção e mescla de nutrientes para o solo.
SEMENTE PLANTADA
Vendo-se sem nenhuma renda e em meio à pandemia de Covid-19, em 2020, o agricultor Severino Vicente, conhecido como Biu, experiente na cultura de algodão, resolveu conversar com o prefeito de Ingá, Robério Burity, sobre uma oportunidade de tentar novamente reintroduzir o plantio do “ouro branco” na região, mas de maneira orgânica, sem o uso de agrotóxicos. Loucura? Foi o que pensaram de imediato. Mas outros “loucos” também deram um voto de confiança e Biu, hoje presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar, junto a Antônio Calu, também agricultor e atual presidente da Cooperativa dos Cotonicultores de Ingá (Itacoop), conseguiram não só a doação do terreno de 50 hectares para o plantio, mas também a união de forças públicas e privadas, como a dos agricultores, Prefeitura de Ingá, Governo do Estado da Paraíba, Natural Cotton Color (Francisca Vieira), Têxtil Cataguases, Dalila Ateliê Têxtil, Empresa Paraibana de Pesquisa, Extensão Rural e Regularização Fundiária (Empaer), Senai-PB, entre outras entidades.
“Não foi fácil. Em 1982, perdemos tudo por causa do bicudo e viemos replantar agora. Isso não significa que o bicudo não veio, mas com nossa experiência, novas tecnologias e aprendizados, conseguimos driblá-lo. Este ano nem precisamos aplicar o defensivo natural que nós mesmos preparamos aqui. O bicudo chegou atrasado”, brinca Biu, com a esperança renovada em ver os primeiros resultados florescerem.
“Começamos a plantação com apenas 5 famílias, havia muita crítica, piada sobre o que estávamos fazendo. “Cabra besta, isso não vale nada”, e daí para mais. Mas o mesmo pessoal que nos criticou no começo hoje está aqui trabalhando, pois, quando viram a safra de 2021, começaram a acreditar. Hoje somos em 43 famílias associadas plantando algodão só nesta área do Ingá, e já temos outras pessoas pedindo roçado para trabalhar. Para nós é muita alegria, passamos 40 anos sem o algodão, agora temos nossa renda, nosso sustento. Queremos mostrar aos jovens que não é só no Sul que as coisas acontecem, aqui também, e se eles ficarem e plantarem, com certeza terão um futuro. Com todo o apoio que tivemos, estamos devolvendo essa beleza aqui”, celebra.
COMPRA GARANTIDA
O algodão orgânico plantado em Ingá tem contrato de compra garantida entre tecelagens e confecções, e isso tem trazido maior segurança aos agricultores, já que recebem metade do valor no plantio da safra e o restante na entrega da pluma. Entre os clientes de carteirinha estão a Natural Cotton Color, Redes Santa Luzia, Dalila Ateliê Têxtil e Cataguases, que foram os primeiros a acreditar na empreitada e “fazer acontecer”. Esse formato tem atraído a atenção da divisão de alimentação e agricultura da Organização das Nações Unidas (FAO/ONU), que foi in loco conhecer o projeto, quanto novos agricultores e clientes, que entram em uma espécie de lista de espera, que vai se ajustando de acordo com a safra. Na primeira, em 2021, havia 5 hectares plantados, que renderam 10 toneladas; nesta, de 2022, foram 46 hectares, e previsão de 60 toneladas de pluma. Para 2023, a projeção é que haja um aumento significativo tanto em áreas plantadas e, consequentemente, em safra e pessoas trabalhando. De acordo com Biu, serão umas 130 pessoas ajudando na colheita. “Esse projeto está beneficiando e ainda vai beneficiar muitas famílias”, reforça.
“A retomada da produção em Ingá é um resgate cultural e histórico. Vamos colocar a cidade de volta no mapa do algodão do país”, disse o prefeito de Ingá, Robério Burity, que relata que as políticas públicas que estão sendo aplicadas neste projeto são para que os números cresçam cada vez mais, aumentando a quantidade de famílias e produtores contemplados a cada ano.
“Quero que essas famílias se empoderem, cresçam, gerem renda, desenvolvam-se e fomentem a economia local sem ficarem reféns de governos”, afirmou Burity.
Para que o projeto cresça em base sustentável, além do acompanhamento e capacitação dos agricultores pela Empaer e outras entidades envolvidas, a modernização de técnicas é outro fator importante. Dessa forma, a fim de que a pluma tenha alta qualidade, não se contamine e perca a certificação internacional de fibra orgânica, as inspeções são constantes. E, para ajudar também neste quesito e ganhar produtividade, a Prefeitura de Ingá desapropriou uma área de 10 mil m2 no bairro Estação, onde estão as ruínas de uma antiga tecelagem, para que seja instalada uma unidade voltada, primeiro, ao descaroçamento do algodão mais próximo de onde é produzido e, futuramente, ao beneficiamento de suas sementes para outras aplicações, como extração do óleo para a indústria cosmética, e da torta, para ração animal.
A descaroçadeira que será instalada foi financiada com o apoio das tecelagens Cataguases e Dalila, que fizeram o aporte para garantir a compra do maquinário a tempo de ser utilizado na próxima colheita, e o valor investido será ressarcido pela Cooperativa dos Cotonicultores (Itacoop), para quem a área da antiga fábrica foi arrendada pelos próximos 10 anos, prazo que pode ser prorrogado.
Nas palavras dos empresários André Klein, da Dalila, e Thiago Peixoto, da Cataguases, que estiveram no evento Dia de Campo 2022 e sempre acompanham a evolução do projeto, tudo o que for plantado e colhido de algodão orgânico no Ingá tem demanda para comprar.
Aliás, o quilo da pluma do algodão orgânico produzido no Ingá é o mais alto praticado no país, isto pelo valor agregado que ele carrega em toda a sua produção e manejo sustentável nos âmbitos ambiental, social e econômico.
MULHERES DO INGÁ
A força feminina também tem um importante papel na manutenção da cultura local e geração de renda, literalmente. Se na lavoura do algodão elas ainda formam um time menor – mas que está crescendo, pois na primeira safra havia apenas uma agricultora, e na segunda foram dezessete –, é no artesanato e na costura que elas dominam.
No caso do bordado Labirinto (alguns chamam de renda Labirinto), que foi alçado em 2021 a Patrimônio Cultural Imaterial da Paraíba, o resgate da técnica, introduzida na região pela colonização portuguesa, tornou-se necessário, já que as artesãs acabavam se desinteressando pelo baixo valor de venda, não suprindo suas necessidades para viver só dela.
Por isso, a prefeitura fomentou o projeto “Labirinto de Ingá”, aproximando essas artesãs para que produzam o bordado em comunidade e sejam pagas por hora, e não por peça feita. Vale destacar, mais uma vez, a influência de Francisca Vieira nesta valorização do Labirinto, que é usado em suas peças da Natural Cotton Color, difundindo a técnica aqui no Brasil e no exterior, com a exposição em feiras internacionais.
“Todo o suporte está sendo alinhado pela gestão, com incentivos para a formação de cooperativas, associações e capacitações entre elas para que sigam com a independência entre cooperadas e independentes do governo, sendo uma política de Estado. Atualmente temos três associações de artesãs do Labirinto presentes em nossos distritos de Pontina, Chã dos Pereiras e na comunidade quilombola Pedra D’Água”, diz o prefeito Burity.
A costura é outra área que vem ganhando espaço entre as mulheres de Ingá. Depois do fechamento da unidade local da Alpargatas, em 2020, onde eram confeccionados os tênis Mizuno, uma das marcas licenciadas da companhia, cerca de 200 costureiras se viram sem emprego do dia para a noite, praticamente.
Com a necessidade de procurar algo para seu sustento e autoestima, dez dessas mulheres tomaram a iniciativa de formar uma cooperativa de costura, que completou um ano em julho: a Cooveste, que atualmente é presidida por Dulcinéia Melo.
Ela conta que no início, para se estruturarem, tiveram cursos de capacitação em costura e modelagem em peças de malha e lingerie ministrados pelo Senai-PB, com o apoio da Prefeitura de Ingá e do Instituto Alpargatas, e, na parte de gestão e formalização da cooperativa, receberam auxílio da Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB/Sescoop-PB.
“Também não tínhamos máquinas de costura industriais, eram emprestadas, e hoje, por meio do nosso esforço, conseguimos comprar 4 máquinas industriais com direct drive. Com materiais de doação, como tecidos, também vamos fazendo itens para vendermos e reverter o lucro para a compra de máquinas, reinvestindo na cooperativa”, comemora.
A Cooveste tem produzido peças para duas facções: uma em Santa Cruz do Capibaribe (PE), fazendo jalecos hospitalares, e outra em Campina Grande (PB), costurando modinha. A cooperativa ainda tem confeccionado camisetas de futsal e promocionais para o sítio arqueológico do Ingá.
“Atualmente somos dez sócias na cooperativa e estamos buscando mais pessoas. Este é só o começo e não vamos parar, vocês ainda ouvirão falar muito da Cooveste”, diz Dulcinéia.