Setor ainda é ultradependente de materiais sintéticos, mas precisa passar por reabilitação para garantir o próprio futuro
Quem atua na indústria têxtil e de moda sabe bem o quanto ela vem sendo cobrada, e com razão, pelos danos causados ao meio ambiente, os quais vêm se tornando cada dia mais prementes: poluição do solo, das águas, microplásticos, aumento dos gases de efeito estufa, mudanças climáticas e catástrofes recorrentes.
Enquanto algumas empresas, marcas e startups estão se desdobrando para conter os danos e achar melhores soluções, a maioria esmagadora ainda não acordou para a realidade que estamos vivendo, a qual precisa ser amparada para uma mudança. Urgente.
Dentre as inúmeras questões nas quais o setor se insere, e que acabam se interrelacionando, vamos trazer luz a ele: o petróleo, o “ouro negro” com infinitas utilidades, mas que vem sendo explorado há quase dois séculos de forma desenfreada, principalmente após a criação do plástico, que nasceu de origem celulósica, e, depois, com sua evolução para poder ter diferentes aplicações e escalar, tornou-se sintético (o baquelite, em 1909, foi o precursor, e depois dos anos 1930, veio a polimerização, período em que o fio de náilon foi criado para o setor têxtil).
Apesar de todo o problema atual, seria injusto dizer que o plástico ou o poliéster não são necessários ou não trouxeram avanços, veja o setor hospitalar, por exemplo, as proteções térmicas, os guarda-chuvas… A questão toda é o seu abuso, colocar o plástico de origem fóssil, como o petróleo, deliberadamente onde não precisa.
No setor têxtil, o poliéster é a fibra mais utilizada, em especial no vestuário, representando quase 60% das fibras consumidas no mundo. De acordo com um relatório da Mordor Intelligence, o consumo global da fibra de poliéster deve crescer, em média, 4% ao ano até 2029, em uma estimativa feita no ano-base de 2023, com a maior parte concentrada na área Ásia-Pacífico, ou seja, também o maior eixo produtor de têxteis. Ou seja, a moda é realmente viciada em petróleo.
A DEPENDÊNCIA OCULTA DO FAST FASHION EM COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS
O Fossil fashion: the hidden reliance of fast fashion on fossil fuels, um report da Changing Markets Foundation, organização nascida do propósito de trazer questões ambientais e ajudar a fomentar soluções para elas, fala como a indústria da moda atual tornou-se sinônimo de consumo excessivo, crise de resíduos crescente, poluição generalizada e exploração de trabalhadores nas cadeias de suprimentos globais. Menos conhecido é o fato de que o insaciável modelo de negócios fast fashion é viabilizado por fibras sintéticas baratas, produzidas com combustíveis fósseis, principalmente petróleo e gás. O poliéster, o queridinho dessa indústria, é encontrado em mais da metade de todos os têxteis, e a produção deve disparar, como mencionado.
Desde o início dos anos 2000, a produção de moda dobrou e espera-se que cresça em volume de 62 milhões de toneladas em 2015 para 102 milhões de toneladas até 2030, representando US$ 3,3 trilhões em valor. Grande parte desse crescimento se deve ao consumo desenfreado; estamos comprando mais roupas do que nunca, usando-as menos e criando enormes pilhas de resíduos têxteis, a maioria dos quais acaba em aterros sanitários ou é queimada em incineradores tóxicos. Poucos consumidores comuns sabem que essa produção crescente de roupas é possibilitada por fibras sintéticas baratas, principalmente poliéster, que é encontrado em mais da metade de todos os têxteis produzidos. De fato, há uma clara correlação entre o crescimento da produção de poliéster e o crescimento da indústria fast fashion, um não pode existir sem o outro.
A produção de poliéster cresceu nove vezes nos últimos 50 anos, e a fibra tem sido amplamente adotada na indústria da moda como um material de baixo custo que permite às marcas produzir uma variedade infinita de itens baratos para as últimas tendências ou estação, com pouca ou nenhuma preocupação sobre a durabilidade das peças. O poliéster é barato, custando metade do preço por quilo do algodão, e se consolidou como a espinha dorsal do modelo de moda descartável atual. As tendências falam por si sós, com o consumidor médio comprando 60% mais roupas em comparação a 15 anos atrás, mas usando cada peça de roupa pela metade do tempo. A flexibilidade do poliéster como material fez com que ele se infiltrasse também em outros materiais, com misturas como algodão e poliéster sendo cada vez mais usadas, criando outro conjunto de problemas quando se trata de gerenciamento de resíduos e reciclagem.
A produção de fibras sintéticas baratas não só possibilita a produção de moda de baixa qualidade e descartável, mas também torna a indústria da moda altamente dependente da extração contínua de combustíveis fósseis. No caso, a produção de fibras sintéticas para a indústria têxtil representa atualmente 1,35% do consumo global de petróleo. Esse valor supera o consumo anual de petróleo da Espanha. Diversos estudos também demonstraram que a indústria de petróleo e gás está apostando na crescente produção de plástico (que inclui fibras sintéticas) como uma importante fonte de receita futura, à medida que a demanda por petróleo dos setores de energia e transporte diminui.
Esse report observa projeções de mercado semelhantes no setor têxtil. Estima-se agora que as fibras sintéticas crescerão de 69% para 73% da produção total de fibras globalmente até 2030, com o poliéster representando 85% disso. Em outras palavras, se a indústria da moda continuar com seus negócios como de costume, em menos de 10 anos, quase três quartos dos nossos têxteis serão produzidos a partir de combustíveis fósseis. Além disso, esses combustíveis fósseis estão ficando mais poluentes, já vindos do gás de faturamento hidráulico e até mesmo com projetos em andamento para produzir poliéster a partir do carvão. Em 2015, a produção de poliéster para têxteis, sozinha, foi responsável por emissões de mais de 700 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) equivalentes – semelhante às emissões anuais de gases de efeito estufa (GEE) do México ou de 180 usinas termelétricas a carvão. A projeção é de que isso quase dobre até 2030, atingindo o dobro das emissões de GEE da Austrália. Se esses planos de expansão forem adiante, as emissões do setor têxtil poderão crescer rapidamente e minar os compromissos climáticos das marcas de moda.

REHAB
Uma outra pesquisa conduzida pela Changing Markets Foundation (Synthetics Anonymous 2.0) revela uma discrepância entre as alegações de sustentabilidade das marcas de moda e suas metas relacionadas versus o volume de fibras sintéticas provenientes de combustíveis fósseis. Na realidade, há uma quase completa ausência de progresso por parte da indústria da moda em abandonar seu vício em materiais sintéticos. O relatório analisou 55 marcas em suas políticas em termos de materiais sintéticos, reciclagem, metas climáticas e sua posição em relação aos principais elementos da Estratégia Têxtil da UE. Das 55 marcas, apenas uma, a Reformation, está comprometida em eliminar gradualmente os sintéticos virgens até 2030 e reduzir todos os sintéticos (virgens e reciclados) para menos de 1% do total de fontes até 2025. No extremo oposto vem a Shein, como maior poluidora da indústria, sem deixar de lado Nike e Inditex como grandes usuários de fibras sintéticas em seus produtos.
Em um aspecto positivo, o relatório revela que as marcas de moda demonstram níveis significativos de apoio a diversas das políticas propostas na Estratégia Têxtil da UE, com 81% a favor da Responsabilidade Estendida do Produtor (REP), 87% a favor de questões relacionadas ao design ecológico e 94% a favor de legislação para reduzir o risco de falsas alegações ecológicas. Além disso, 83% se mostraram a favor de um aumento obrigatório na transparência da cadeia de suprimentos – algo que não foi proposto na estratégia da UE. Este último indica uma lacuna significativa entre intenção e ação, visto que apenas quatro empresas compartilharam suas listas de fornecedores de fibras sintéticas em resposta ao questionário. No entanto, até mesmo as marcas estão sinalizando que é hora de ir além das medidas voluntárias e que o setor precisa de regulamentação.
No entanto, a análise das respostas ao questionário indica que o vício em fibras sintéticas na moda não passou por nenhuma reabilitação significativa nos últimos cinco anos. Assim, em meio a uma emergência climática acelerada, mais de um quinto das grandes empresas de moda estão registrando uma dependência maior de tecidos derivados de combustíveis fósseis.
MAS E A RECICLAGEM?
A reciclagem ajuda, mas ainda não resolve os problemas do fast fashion, nem conterá o crescimento exponencial do uso de fibras fósseis. Atualmente, menos de 1% das roupas são recicladas para a fabricação de roupas novas, e a participação do poliéster reciclado está diminuindo; embora representasse 14% em 2019, essa participação diminuirá para 7,9% da produção total de poliéster até 2030. Além disso, praticamente todo o poliéster reciclado em roupas não provém de peças recicladas, mas sim de garrafas plásticas recicladas.
A reciclagem também não resolve um enorme problema microscópico: as microfibras. Esses minúsculos fragmentos de plástico se desprendem de nossas roupas quando as lavamos, vestimos ou jogamos fora, e vazam para nossos corpos e para a natureza. As microfibras são encontradas em todos os ecossistemas oceânicos, com um estudo recente descobrindo que 73% da poluição por microfibras em águas árticas antes intocadas vem de fibras sintéticas, que podem ser provenientes de têxteis. Mais grave ainda, microplásticos foram encontrados até mesmo em placentas de bebês em gestação, afetando o corpo humano de maneira ainda não totalmente compreendida.
A EVOLUÇÃO TEM BASES BIOLÓGICAS – E CIRCULARES
Determinadas a trilhar um caminho ecoeficiente, grandes líderes globais no setor vêm trabalhando arduamente em pesquisa e desenvolvimento de produtos para a transição de sua base fóssil para biológica, ajudando a reduzir o impacto do setor no meio ambiente. É o caso da NILIT, da Rhodia, da The LYCRA Company, da Hyosung (creora), Unifi e Eco Fashion Solutions, por exemplo.
A NILIT, referência na produção de poliamida premium 6.6, vem continuamente trazendo soluções mais sustentáveis aos têxteis, como o fio SENSIL® ByNature, que traz embarcada a tecnologia Biomass Balance (BMB), uma matéria-prima renovável produzida com resíduos pós-consumo, resultando em menor geração de CO2 e gases de efeito estufa do que as matérias-primas tradicionais derivadas de fósseis; o SENSIL® BioCare, desenvolvido com uma tecnologia invisível integrada que ajuda as fibras a se decomporem para evitar o acúmulo de resíduos em oceanos e aterros sanitários; e o SENSIL® Flow, um fio que proporciona um tecido monocomponente com elasticidade confortável, que pode ser considerado uma alternativa ao elastano em certos usos finais, ao mesmo tempo que torna possível a reciclagem pós-consumo e a circularidade da matéria-prima.
A The LYCRA Company, sinônimo de elastano, sabe das dificuldades para reciclá-lo, quando misturado a outras fibras, e vem implementando a reciclagem pré-consumo dos próprios resíduos de produção (linha EcoMade), transformando em novos fios elastizados sem perder a performance de um fio feito 100% com material virgem, reduzindo não somente o desperdício, como a poluição e a geração de CO2. Além disso, vem inserindo bases biológicas e de fontes renováveis em suas mais novas criações, como o fio LYCRA® EcoMade Bioderivado, 70% composto de milho industrial, assim como a creora com o elastano regen, 100% reciclado pré-consumo, e o regen Bio, também de base biológica (milho industrial). A empresa sul-coreana promete ser, a partir de 2026, a única no mundo com um sistema de produção 100% integrado para elastano de base biológica, desde a matéria-prima (cana-de-açúcar) até a fibra.
Outra gigante global, a Unifi, líder na reciclagem de garrafas PET para a produção de fios de poliéster Repreve®, lançou o programa Textile TakebackÔ, que faz a reciclagem têxtil de poliéster pós-consumo e pós-industrial protegendo a integridade molecular dos polímeros existentes, transformando-os novamente em fios e filamentos, em escala comercial, para reinserção no processo de tecelagem e vestuário.
A Rhodia, do grupo belga Sovay, foi pioneira no mundo em lançar a poliamida com aditivos para acelerar (de 10 a 20 vezes) sua decomposição em aterros e oceanos, a Amni® Soul Eco, reduzindo o acúmulo de resíduos têxteis e microplásticos no planeta.
E mais recentemente, a Eco Ventures Brasil, subsidiária da americana Eco Ventures Inc. e produtora de resinas biodegradáveis, lançou, aqui no Brasil, o Go Green Bio Polyester, um fio têxtil de poliéster aditivado com propriedade biodegradável que tem como principal ingrediente o óleo de coco de palma. Ao fim da vida útil, seu polímeros aditivados se degradam no solo por meio de microrganismos e de forma natural, sem causar danos ou gerar microplásticos.
TEMOS SOLUÇÃO?
Ao menos que nos afastemos do modelo de produção de moda fóssil, corremos o risco de ultrapassar os limites planetários em nossa busca por moda barata. Seremos totalmente incapazes de lidar com as montanhas de resíduos de roupas produzidas pelo sistema, e a dependência de combustíveis fósseis contribuirá para níveis catastróficos de mudanças climáticas.
É mais urgente do que nunca encontrar soluções legislativas eficazes para colocar a indústria da moda em um caminho mais sustentável e impulsionar maior circularidade. As indústrias têxteis e as marcas de moda também precisam de se responsabilizar pelo que acontece em suas cadeias de abastecimento e devem assumir total responsabilidade pelo que acontece às suas roupas no fim da vida útil, em consonância com o princípio do poluidor-pagador.
PARA LER


Synthetics anonymous 2.0: fashion’s persistent plastic problem (Synthetics anonymous 2.0: o persistente problema do plástico na moda) – link: https://bit.ly/43bTege
Fashion’s plastic paralysis: how brands resist change and fuel microplastic pollution (A paralisia plástica da moda: como as marcas resistem à mudança e alimentam a poluição por microplásticos) – link: https://bit.ly/4dmZtmg


Dressed to kill: fashion brands’ hidden links to russian oil in a time of war (Vestida para matar: ligações ocultas das marcas de moda ao petróleo russo em tempos de guerra) – link: https://bit.ly/4muvNaW
Crude couture: fashion brands’ continued links to russian oil (Costura bruta: vínculos contínuos das marcas de moda com o petróleo russo) – link: https://bit.ly/3GSaq2S


Ouro negro – A saga do petróleo: a incrível história do petróleo, da sua origem até os dias atuais (Leo Bittencourt).