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SEGUNDA CHANCE: À MODA E AO PLANETA

Emergência climática e degradação do solo soam o alarme para ações imediatas, a fim de garantir algum futuro menos árido

(ABERTURA) Vestido da campanha The Atacama Collection, feita pela Electrolux com o duo Rave Review, criado por meio de upcycling com roupas descartadas no deserto do Atacama. Foto: Divulgação

Falar em emergência climática, para muitos, ainda pode parecer coisa de “ecochato”. Mas a verdade é que estamos realmente vivendo este cenário, onde, também para muitos, a associação aos efeitos de anos de poluição acelerada ainda não “caiu”, mas que eles vêm se materializando de forma violenta, isso vêm. Veja as enchentes, os ciclones e os furacões, que estão mais frequentes e cada vez mais fortes, só para exemplificar.

E o que isso tem a ver com a moda? Muita coisa. Nossa indústria é, infelizmente, altamente poluidora, seja em contaminação de água, aterros sanitários, emissões de carbono e, apesar do movimento importante de empresas globais para minimizar esses efeitos nocivos, há uma longa estrada a ser percorrida – mas esse percurso precisa ser acelerado, ao mesmo tempo que o consumo desenfreado precisa de um breque. De acordo com o Índice de Transparência da Moda Brasil 2022, do Instituto Fashion Revolution Brasil, temos pouco mais de 6 anos para conseguir reverter a crise climática, isso se nos esforçarmos bastante para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

Um relatório da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD), chamado Neutralização da Degradação da Terra para a Conservação da Biodiversidade, publicado em dezembro de 2019, aponta que o bem-estar de 3,2 bilhões de pessoas têm sido afetado pela degradação do solo, desequilibrando todo o ecossistema, e isso passa pelas formas insustentáveis de produção e consumo.

Trata-se de um efeito dominó que ocorre muitas vezes sem enxergarmos, só nos damos conta quando calamidades começam a acontecer – e olhe lá! De acordo com o estudo da UNCCD, a biodiversidade é tanto um elemento central dos ecossistemas – naturais e modificados – que fornecem serviços vitais à humanidade quanto um serviço em si mesmo. Por exemplo, microrganismos geram nutrientes ao solo; plantas lenhosas sequestram carbono; e as abelhas e outros insetos polinizam muitas das culturas alimentares do mundo. O desequilíbrio dos ecossistemas, além de tudo, aprofunda também as desigualdades sociais mundo afora.

A indústria têxtil e a de moda, consequentemente, estão inseridas nesse ciclo, pois depende de matérias-primas vindas da natureza e de um equilíbrio para plantar, colher, produzir, ter definições climáticas o mais próximas possíveis das estações do ano correspondentes a fim de que tanto a produção quanto o consumo não sejam impactados.

Mas como manter esse equilíbrio se, de modo geral, estamos esgotando tudo o que a terra – e o planeta Terra – pode oferecer? Está aí uma conta se tornando quase impossível de fechar.

Um exemplo bem impactante são os “cemitérios de roupas” que vêm se formando pelo mundo, com destaque para o localizado no Deserto do Atacama, no Chile, o mais antigo do planeta. Anualmente, chegam a esse local em torno de 59 mil toneladas de têxteis, entre calçados e roupas – tanto usadas quanto novas, acreditem –, e as montanhas desses artigos, vindos de países da Europa, da Ásia e dos Estados Unidos, só vão crescendo. São roupas para revenda em países da América Latina, mas cerca de 40 mil toneladas vão parar na comunidade de Alto Hospício.

A produção global e o consumo de itens de vestuário quadruplicou nos últimos 20 anos, efeito do fast e, mais recentemente, do ultra fast fashion, como acontece nos moldes da Shein, que não é a única. E, pasmem, 73% de todas as roupas são queimadas ou acabam em aterros sanitários, com apenas 1% sendo reciclado. De acordo com a United Nations Economic Comission for Europe (Unece), 21 bilhões de toneladas de roupas acabam em aterros todos os anos.

No Brasil, foram produzidas 2,16 milhões de toneladas de tecidos em 2021, e 8,1 bilhões de peças de vestuário, segundo dados do IEMI – Inteligência de Mercado para a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). E entre o descarte de roupas usadas, retalhos de tecidos e couro, o país produz mais de 4 milhões de toneladas de resíduos têxteis ao ano, segundo o levantamento da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública (Abrelpe), correspondendo a 5% de todo o resíduo sólido gerado em território nacional.

Como dá para ver, o desafio em reduzir os impactos ambientais da indústria têxtil é gigantesco, mas iniciativas vêm sendo tomadas para que o quadro mude, por pouco que seja. Nesta matéria, faremos o recorte para os aterros sanitários, resíduos, reciclagem, circularidade e novos paradigmas agregados ao setor têxtil. 

UM NOVO DESENHO NA PRODUÇÃO DE FIOS E TECIDOS

Quando situações como as que vemos no deserto do Atacama, nas ruas, em nosso cotidiano, nos 73% de roupas produzidas que vão parar nos aterros, é de se questionar: além de repensar a produção quanto à quantidade e à geração de resíduos no corte e na modelagem, por exemplo, o que mais pode ser feito para dar uma solução ao que já foi produzido e descartado? Garanto que reciclagem aparece nos seus trending topics mentais. Acertei?

Mas, indo mais a fundo e considerando que a demanda por parte de consumidores e da indústria por fios reciclados tem aumentado e deve permanecer crescente, bem como a redução no uso de matérias-primas virgens, já parou para pensar que um redesenho produtivo está surgindo?

Marcello Bathe, gerente comercial da divisão de Fios e Fibras de Poliamida da Rhodia, acompanha esse movimento e diz que a cadeia industrial têxtil está atenta e fortemente empenhada em avançar na sustentabilidade em todos os seus elos, e isso inclui a adoção cada vez maior de matérias-primas e insumos que valorizam fontes renováveis e, é claro, sustentáveis.

“As empresas estão desenvolvendo fibras, sejam naturais, artificiais ou sintéticas, que atendam às necessidades e demandas de sustentabilidade e circularidade, e sem dúvida haverá impacto positivo para o mercado e o consumidor final”, diz Bathe. “No que diz respeito às fibras e fios fabricados pela Rhodia, a adaptação de máquinas e equipamentos têxteis é um processo factível, perfeitamente ajustável ao parque produtivo dos clientes”, aponta.

Fabianne Pacini, diretora de marketing global da NILIT, produtora da poliamida premium Sensil®, afirma que a empresa também tem observado o crescente interesse por fios sustentáveis, tanto por parte de tecelagens buscando soluções para a redução do impacto ambiental, quanto de marcas de moda – nacionais e internacionais – que desejam ter uma melhor oferta de produtos que combinem design, funcionalidade e sustentabilidade.

“Nosso papel é o de apoiar este movimento com soluções e serviços para o desenvolvimento de produtos que atendam a essas demandas de forma que o consumidor continue podendo adquirir peças duráveis, de performance e qualidade. Por isso, estamos procurando maneiras de incorporar mais conteúdo reciclado em nossos produtos e processos, experimentando matérias-primas renováveis para reduzir nosso consumo de matérias-primas de origem fóssil. Também estamos trabalhando para criar fibras que enderecem problemas de ciclo de vida dos produtos, apoiando nossos clientes para uma economia circular”, afirma Fabianne.

Renata Guarniero, gerente de marketing da Vicunha. / Divulgação

Na Vicunha, a introdução de fios e fibras recicladas para a geração de novos artigos têxteis não é novidade, mas vem ganhando musculatura e novos caminhos, como a cocriação junto aos seus clientes.

Um case muito emblemático é o do projeto Recyckle, em que a Calvin Klein Brasil, junto à Vicunha, transformou um estoque de camisetas que estava parado em insumo para a criação de um novo tecido exclusivo, resultando em uma coleção-cápsula de jeans.

Renata Guarniero, gerente de marketing da Vicunha, acredita que esta demanda, que já é uma realidade, tem o potencial de impactar positivamente o mercado e o ecossistema ambiental global. “Não só estamos em linha com essas mudanças, como também criando tendências no setor têxtil. Estamos promovendo práticas mais sustentáveis e colaborando com outras empresas e organizações para criar soluções inovadoras e responsáveis à nossa indústria”, ressalta.

Na parte de maquinários, como os teares, Renata diz que a utilização de fios reciclados pode, sim, exigir algumas mudanças e ajustes, já que a composição e a estrutura dos fios podem ser diferentes dos convencionais. Mas que a Vicunha, no entanto, investe constantemente em maquinários de última geração. “Isso permite que a empresa esteja sempre atualizada em relação às mais novas tendências do mercado e com a sustentabilidade, além de preparada para se adaptar às novas demandas com agilidade.”

Audrei Russo, diretora de marcas Adulto do Grupo Malwee. / Divulgação

Audrei Russo, diretora de marcas Adulto do Grupo Malwee, pondera que a demanda por fios sustentáveis e reciclados tem aumentado, porém ainda é pequena como um todo. Ela vê um desafio tecnológico nessa questão, mas acredita estar mais nos âmbitos logístico e educacional.

“Gerar volume de reciclagem, principalmente a partir de peças de pós-uso, fechando o círculo da moda circular, é o ponto-chave em que está envolvida a prática de o consumidor dar início ao processo e também conseguirmos viabilizar a chegada dessas peças às centrais de reciclagem. Tecnologicamente, o desafio começa na triagem dos tipos de tecido a serem reciclados e passa para o processo de fiação, onde temos que viabilizar a fabricação de fios de boa qualidade a partir de fibras curtas, por serem fruto do processo de desfibragem. Nada muito diferente do que já aconteceu com outros tipos de produto, mas, com roupas, é uma mudança importante de processos para a indústria e de hábito ao consumidor. Nós sonhamos e temos investido em iniciativas como o projeto Des.a.fio, lançado em 2022, com o qual queremos entregar produtos que usem fios reciclados de pós-uso que tenham preço e qualidade verdadeiramente compatíveis com peças oriundas de matérias-primas virgens.”

CIRCULARIDADE

Chave para a mudança, a circularidade precisa ser mais bem difundida, compreendida e aplicada, não só no têxtil, mas em toda atividade econômica.

“Acredito na força da transformação das empresas, que são parte do elo da cadeia produtiva com potência para induzir a mudança e a inovação”, afirma Cyntia Kassai, gerente de ESG da C&A, que reforça a importância da preservação dos recursos naturais e da conscientização das organizações sobre os processos de fabricação de seus produtos e serviços, cada vez mais relevante, principalmente após a implementação da agenda ESG.

“Mesmo com mudanças, sabemos que, ainda hoje, a indústria da moda é uma das mais lembradas quando o assunto é impacto ambiental e social. Na contramão dessa afirmativa, a C&A busca ser uma empresa de moda com impacto positivo e, há anos, firma compromissos socioambientais além de investir recursos para o desenvolvimento da economia circular, uso de matérias-primas e processos produtivos mais sustentáveis, diversidade e equidade na moda, entre outros assuntos importantes para a sociedade”, diz Cyntia.

A varejista vem investindo em iniciativas para promover a circularidade na moda, como a participação no programa Cradle to Cradle Certified® (do berço ao berço), que assegura que todas as peças foram produzidas de forma circular, desde os materiais (aviamentos, tecidos, linhas de costura, materiais das etiquetas) até a parte socioambiental. A C&A Brasil foi a primeira no país a conquistar a certificação nível Gold, em 2020, pois até então só empresas da Europa e da Ásia haviam conseguido o feito.

A linha Ciclos, por exemplo, é toda feita nestes parâmetros, e suas peças, como calças jeans e camisetas, podem ser recicladas ou reaproveitadas, pois 100% do algodão utilizado na confecção é de origem sustentável (tecidos e linhas de costura); os botões e aviamentos não contém metais pesados; todos dos produtos químicos utilizados no beneficiamento das peças não apresentam riscos ao meio ambiente e toda a água utilizada no processo retorna limpa e tratada ao meio ambiente; 100% dos produtos utilizados para a coleção, bem como a mão de obra, vêm de empresas que mantém condições dignas de trabalho; e 50% da energia utilizada na confecção das peças têm origem renovável.

“A Ciclos é um marco para o varejo de moda brasileiro e demonstra o comprometimento da C&A em promover a sustentabilidade e a responsabilidade socioambiental em todo o processo produtivo. A marca tem orgulho em apresentar a linha, que é prova do nosso compromisso em fornecer roupas sustentáveis aos consumidores brasileiros.”

Cyntia ainda destaca outras ações promovidas pela C&A Brasil inseridas na circularidade, como a coleta de roupas usadas para reaproveitamento (Movimento ReCiclo). As peças, que podem ser de qualquer marca, e que estejam em bom estado são doadas, e o restante encaminhado para reciclagem. “Em 2022 arrecadamos cerca de 17 toneladas de roupas”, ressalta.

Ainda dentro do ReCiclo, em 2021 foi lançado o Jeans Circular, em parceria com a Cotton Move, feito a partir de sobras de produção e peças coletadas nas urnas da lojas. O processo conecta atores ao longo da cadeia produtiva, inclusive o consumidor, e gera um impacto relevante com a reutilização de tantas peças descartadas (foram 2 toneladas de jeans coletadas nas urnas e mais sobras de tecidos dos produtores), resultando em 20 mil calças jeans feitas de modo circular. A iniciativa ganhou o Prêmio Eco Amcham 2022.

Linha Ciclos, da C&A, única no Brasil a receber a certificação Cradle to Cradle Certified® nível Gold./ Divulgação

Em 2019 a varejista aderiu ao Programa AD Circular, de sua fornecedora de etiquetas, para a reciclagem dos resíduos gerados pelos rótulos autoadesivos, garantindo sua reinserção em outros ciclos produtivos; e desde 2013, utiliza a logística reversa dos cabides em seus centros de distribuição. Os que estão em condições de uso são separados e reenviados às lojas C&A em caixas de papelão reaproveitadas dos produtos importados, e os cabides danificados são enviados à recuperação ou reciclagem. “Em 2022, enviamos 24 toneladas de cabides plásticos quebrados para reciclagem e 44 toneladas de metal (gancho e presilhas) foram recuperados por meio da reforma de cabides”, comemora a gerente de ESG da C&A.

Na Malwee, a visão estratégica em ter um negócio que funcione de forma consciente está no cerne da empresa, desde a sua fundação, em 1968 (o Grupo Malwee, então Weege, foi fundado em 1906), e é uma das empresas brasileiras de moda que mais tem aplicado e compartilhado o modelo de circularidade no país.

“Somos a favor de compartilhar conhecimentos já existentes como forma de amadurecer o tema e a indústria”, afirma Audrei Russo. “Temos uma política de transparência e iniciativas focadas em compartilhar nossos aprendizados com a indústria, para que outras empresas possam implementar soluções de impacto positivo já tendo experiência e informações.”

A gerente de marcas Adulto do Grupo Malwee relembra alguns cases realizados também em parcerias com outros players da cadeia, como é o caso do “Fio do Futuro”, onde a Malwee se juntou à catarinense Eurofios para fabricar uma matéria-prima feita com 85% de peças usadas que seriam descartadas e 15% de fibra de poliéster reciclado (feito a partir de garrafas PET).

“O importante é começar com um primeiro passo: está tudo bem se é um pedaço da roupa, um pedaço do processo sustentável. Democratizar e escalar a moda consciente é fundamental, até chegarmos na rotina das pessoas com soluções acessíveis e democráticas. Muitas empresas acabam desistindo, porque é um processo longo de transformação: A verdade é que não tem milagre. É uma construção no longo prazo, com trabalho, dedicação e consistência. Algo que parece a salvação hoje, mais para frente pode não fazer sentido. E o que fazemos? Pesquisamos de novo!”, aponta Audrei.

A Renner é outra varejista de moda que vem se empenhando em tornar seus processos e produtos mais sustentáveis e trazendo a economia circular para dentro de seu modelo de negócio.

Eduardo Ferlauto, gerente geral de sustentabilidade da Lojas Renner, diz que a área de Sustentabilidade foi criada na empresa em 2013, mesmo ano em que o tema passou a fazer parte dos valores corporativos da companhia. Ele conta que em 2021, a Renner concluiu seu primeiro ciclo de compromissos públicos de sustentabilidade, superando as metas fixadas em 2018.

“Atingimos, por exemplo, a marca de 81,3% dos produtos de vestuário da marca Renner feitos com matérias-primas ou processos de menor impacto ambiental. Também finalizamos o ano com toda a nossa cadeia nacional e internacional de fornecimento de artigos têxteis com certificação socioambiental. Além disso, alcançamos 100% do consumo corporativo de energia a partir de fontes renováveis de baixo impacto, como solar, eólica e pequenas centrais hidrelétricas. E reduzimos em 35,4% nas emissões corporativas absolutas de dióxido de carbono (CO2) frente ao inventário de 2017”, celebra.

Eduardo Ferlauto, gerente geral de sustentabilidade da Lojas Renner. / Divulgação

“Em 2022, dando continuidade à nossa trajetória de evolução, lançamos nosso novo ciclo de compromissos, que vai até 2030. Agora, os objetivos desdobram-se em três pilares: soluções climáticas, circulares e regenerativas; conexões que amplificam; relações humanas e diversas.”

Ferlauto diz compreender a circularidade como um caminho fundamental para a sustentabilidade e, por isso, estão empenhados em expandir o conceito de economia circular de forma integrada em diferentes etapas do ciclo de vida dos negócios da companhia, desde a escolha de matérias-primas, passando pelo desenvolvimento de produtos, ambiente de loja e o pós-consumo.

“Um exemplo recente de iniciativa da Renner relacionada à circularidade é a coleção feita exclusivamente com a técnica de upcycling, a partir do reaproveitamento de peças em desuso e de amostras de tecido. As peças, lançadas em 2022, foram desenvolvidas a partir de uma parceria inédita com a designer uruguaia Agustina Comas, referência no assunto. Além disso, é importante destacar o nosso modelo de loja circular. Em 2021, a Renner foi pioneira ao inaugurar, de forma inédita no varejo brasileiro, uma loja com a aplicação do conceito de circularidade.”

RESPONSABILIDADE

Eloisa Artuso, cofundadora do Instituto Febre, plataforma dedicada a provocar a indústria da moda, a fim de evidenciar e endereçar as responsabilidades dos causadores de impactos socioambientais, é taxativa ao afirmar que as empresas têxteis e de confecção têm total responsabilidade pelos impactos de seus produtos, serviços e operações, não só na natureza, mas também nas pessoas, sejam trabalhadores das suas cadeias de valor, sejam comunidades eventualmente afetadas por suas operações, assim como qualquer outra empresa de diferentes setores.

Eloisa Artuso, cofundadora do Instituto Febre. / Divulgação

“No que diz respeito aos resíduos têxteis de pré e pós-consumo, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), apesar de não apresentar diretrizes específicas sobre o gerenciamento de têxteis, estabelece, de forma clara, a responsabilidade do gerenciamento de resíduos sólidos por parte dos geradores e do poder público. Isso inclui a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, a qual envolve fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos serviços públicos de limpeza urbana de minimizar o volume de resíduos sólidos gerados. Mas o mais importante a ser considerado é que antes de lidarmos com o gerenciamento adequado de resíduos, a preocupação prioritária deveria ser com a redução ou mesmo a não geração desses resíduos. Nesse sentido, deveria ser colocada em prática uma revisão estrutural nos modelos e processos produtivos, que envolve, entre outros aspectos, novas tecnologias (limpas), formas mais eficientes de reaproveitamento, logística reversa e melhor articulação de diferentes atores, inovação e ampliação dos processos de reciclagem, etc. Mas nada disso será suficiente se não houver uma mudança radical de mentalidade sobre a forma como produzimos e consumimos e do que entendemos sobre desenvolvimento e crescimento, o que exigirá uma reformulação estrutural da indústria, principalmente se não houver uma mudança radical na forma como nos relacionamos em sociedade e com a natureza.”

Na visão de Fabianne Pacini, estamos vivendo uma nova era no mercado em geral, uma revolução que tem como foco as pessoas e a preservação do planeta, que trouxe o ESG para o centro da economia, colocando o tema na agenda das empresas. “A redução do impacto causado pela indústria têxtil deixou de ser uma preocupação e passou a ser uma necessidade, à medida que um grupo crescente de pessoas conscientes de seu papel passou a demandar produtos desenvolvidos com maior responsabilidade. Para realmente promover a sustentabilidade, todas as empresas na cadeia de valor precisam olhar para a frente para antecipar os problemas do ciclo de vida dos produtos. Precisamos criar produtos que possam ser facilmente reaproveitados, reciclados e, quando chegarem ao fim da vida útil, descartados com consequências mínimas aos ecossistemas. As escolhas feitas ao longo da cadeia de valor podem afetar enormemente esses parâmetros de fim de vida dos produtos, que devem ser analisados de forma holística, desde a sua produção até o descarte. Seleção de corantes e aditivos, mistura de fibras ou mesmo materiais selecionados para botões e zíperes podem ser fatores preponderantes. Ao considerar desde a fibra até o produto acabado, podemos reduzir significativamente a pegada ambiental de nossa indústria”, analisa.

No segmento activewear, a LIVE!, criada há 21 anos por Gabriel e Joice Sens, que também é diretora-criativa da marca, vem investindo constantemente em melhorias de processos para entregar não só bons produtos, mas também boas práticas ao setor confeccionista.

LIVE!: marca de activewear lançou seu primeiro relatório de sustentabilidade. / Divulgação

“Nós, como marca, queremos deixar um legado positivo ao planeta, e estamos comprometidos em sermos líderes na transformação da indústria de moda fitness, honrando o valor inerente das nossas comunidades e do meio ambiente. Isso significa que, em cada etapa do ciclo produtivo, estamos comprometidos em medir nosso impacto, definir metas para melhorar e nos engajarmos em novas formas de proteger o mundo e sermos o mais consciente possível com a nossa expansão, e é por isso que investimos em práticas e pesquisas que impulsionam mudanças realmente sustentáveis. Mais do que nunca, o mundo precisa de empresas transparentes e responsáveis que assumam a missão de cuidar do planeta em sua essência”, declara Joice.

Recentemente, a marca lançou seu primeiro relatório de sustentabilidade, o LIVE! Future, onde concentrou todas as suas práticas alinhadas ao propósito de desenvolver iniciativas pioneiras em soluções que regeneram problemas ambientais e sociais, divididas em quatro pilares: PROGRESS, PEOPLE, PLANET e PRODUCT.

No pilar PROGRESS, 100% dos resíduos têxteis foram encaminhados para reciclagem; no PEOPLE, 75% da produção foi feita internamente, seguindo os requisitos mais rigorosos de condições de trabalho justas, de acordo com o código de conduta da marca; em PLANET, houve uma economia de 62% de água nos processos ecológicos de tinturaria de tecidos; e em PRODUCT, 30% dos materiais utilizados nas coleções foram mais responsáveis.

“A sustentabilidade é um caminho que decidimos trilhar desde a fundação da marca, e este relatório mede os nossos esforços e conquistas de 2022 e os desafios que temos para buscar um futuro melhor. Estamos trabalhando para fazer a nossa parte da melhor maneira que conseguimos, construindo um ecossistema de produção ética, que cria produtos de alta qualidade, de baixo impacto e duradouros”, reforça a fundadora.

Para Audrei, da Malwee, soluções conscientes não devem ser uma vantagem competitiva de mercado, é preciso compartilhar cada vez mais descobertas e inovações. “Não deve existir ‘a marca’ sustentável, mas ‘as marcas’, cada uma no seu estilo, mas todas conscientes dos impactos que causam às pessoas e ao planeta. A conscientização sobre formas de produzir e consumir são pautas urgentes, e com mais empresas juntas, os resultados virão mais rápido. Essa é a responsabilidade das empresas”, opina.

Ela conta que justamente com o objetivo de trocar conhecimentos para criar uma produção de moda mais saudável, durante a COP27 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), realizada em novembro passado no Egito, o Grupo Malwee apresentou o Desafio Lab, uma plataforma colaborativa de inovação sustentável pensada para facilitar a vida de micro, pequenas, médias e grandes empresas, além de profissionais do setor, que estejam interessados em uma transformação colaborativa.

Audrei explica que o Desafio Lab funciona como um hub em formato híbrido, com ações em universos físicos e digitais, disponibilizando conteúdos exclusivos e inéditos sobre sustentabilidade no setor da moda, em diferentes formatos, produzidos pelos especialistas do Grupo Malwee. Entre os temas previstos estão: moda sustentável, emissão de gases de efeito estufa, o real custo da moda, moda e consumo consciente. “Então, já há muita iniciativa e conhecimento no mercado que pode ser aproveitado por novas empresas e negócios.”

“Viemos de um contexto em que as empresas perguntavam ‘até onde podemos ir sem consequências?’. Depois, passamos a perguntar ‘ok, o que precisamos fazer?’. Agora, o que as empresas precisam se perguntar é ‘o quanto podemos fazer para retribuir?’.”

Kate Raworth, economista e cofundadora do Doughnut Economics Action Lab

BIODEGRADABILIDADE

Esta é uma das áreas na cadeia têxtil que merecem toda a atenção: a decomposição das peças de vestuário, o que implica ter sido feitas com fios e fibras que acompanhem esse ritmo. O ideal seria que todos os detalhes, como aviamentos, linhas de costura e etiquetas, seguissem no design circular também.

Marcello Bathe conta que, nos últimos anos, o mercado atendido pelos fios têxteis sustentáveis da companhia cresceu, e essa é uma área que tem recebido investimentos em âmbito global dentro do Grupo Solvay, ao qual pertence a Rhodia. Ele revela que um dos objetivos da organização é ter pelo menos 65% de suas receitas associadas a soluções sustentáveis até 2030. Na plataforma da poliamida têxtil, em que a criação e o lançamento de produtos estão concentrados no Brasil, há vários projetos em andamento, em diferentes etapas de desenvolvimento.

“Fazendo um balanço, em 2022 atingimos o percentual de cerca de 25% do faturamento da Unidade de Negócios Fibras, associado a produtos têxteis sustentáveis. Em três anos, queremos atingir os 50%.”

Amni Soul Eco®, da Rhodia, primeira poliamida biodegradável do mundo. / Foto: Eliana Rodrigues (Divulgação)

Importante destacar que a Rhodia foi a pioneira no lançamento da primeira poliamida biodegradável do mundo, a Amni Soul Eco®, que acelera a decomposição de roupas descartadas em aterros sanitários controlados e que agora foi aprimorada para levar esse benefício a ambientes marinhos. Sua fórmula permite que a decomposição seja até 10 vezes mais rápida em aterros sanitários e cerca de 40 vezes mais rápida nos oceanos, diminuindo o acúmulo de resíduos têxteis no planeta e reduzindo seu impacto ambiental.

Na NILIT, a crescente demanda do consumidor por tecidos mais responsáveis impulsionou a mudança nos negócios da empresa, que vem ampliando significativamente o investimento em iniciativas de sustentabilidade nos últimos anos, relata Fabianne.  

SENSIL® BioCare, poliamida premium da NILIT, biodegradável em aterros e oceanos.

“Assim, desenvolvemos o mais amplo portfólio de fibras sustentáveis de poliamida 6.6 do mundo, oferecendo produtos que realmente promovem a sustentabilidade. Recentemente, lançamos vários novos produtos SENSIL® projetados especificamente para ajudar a indústria de vestuário a enfrentar seus desafios ambientais mais prementes, como é o caso do SENSIL® BioCare, que possui um aditivo especial que permite que essa poliamida se degrade mais rapidamente do que outras fibras sintéticas nos oceanos e em aterros sanitários, mas desenvolvido em resposta direta às crescentes preocupações sobre microplásticos nos oceanos. Replicamos o ambiente marinho e também o de aterros sanitários em laboratório independente, com base nas normas internacionais ASTM D6691 e ASTM D5591, respectivamente, e estamos acompanhando em tempo real a degradação da nossa fibra. O SENSIL® BioCare demonstrou 79% de biodegradação em 3 anos, e uma fibra de poliamida convencional pode levar décadas”, conta a diretora de marketing global da NILIT.

RECICLAGEM

Uma das principais alternativas hoje na cadeia têxtil é a reciclagem, processo que vive um dilema: apenas uma pequeníssima porcentagem de resíduos têxteis consegue ser destinada a esse fim, enquanto quase a totalidade vai parar nas ruas e aterros. E se esses resíduos não chegam ao seu destino ideal, além de poluir, deixam a oferta e a demanda por produtos reciclados “a ver navios”.

Cientes dessa dinâmica, José Guilherme Teixeira, CEO e fundador da Cotton Move, e Jonas Lessa, CEO da Retalhar, acabaram se encontrando no caminho e uniram forças dentro da Plataforma Circular, aplicativo criado por José Guilherme que promove a circularidade na moda, conectando empresas e consumidores a fim de dar uma destinação correta.

A Plataforma Circular acabou de completar 1 ano e tem tido um crescimento exponencial. José Guilherme conta que no início tinham 200 pontos de coleta cadastrados, agora são 430, em todo o Brasil. Ultrapassaram os 4.700 usuários ativos (consumidores), com 48 mil acessos de mais de 2 minutos, e, ao todo, tem 15 empresas parceiras que trabalham com a plataforma.

“Dobramos nossa produção”, diz José Guilherme. Hoje temos três grandes redes varejistas e estamos negociando com mais duas – fora as indústrias que estão na plataforma, tanto na questão de pré como pós-consumo, e um desses varejistas, utilizando a plataforma, conseguiu colher bons resultados, tendo aumentado consideravelmente a coleta. Outros que não tinham coleta e começaram a ter”, conta.

Jonas Lessa, da Retalhar, revela que, na realidade, o ‘modelo’ como o da Plataforma Circular sempre existiu, tanto na Cotton Move, que sempre teve a reciclagem de jeans como carro-chefe, quanto na Retalhar, que faz a coleta dos resíduos têxteis, onde ambas têm um ambiente – físico ou virtual – para concentrar ofertas e demandas.

“A Plataforma Circular, como aplicativo, serve para mostrar ao consumidor final como funciona a circularidade e como ele pode ser um agente transformador dentro dela, valorizando os produtos e levando suas roupas para descarte correto, já que sem o consumidor nada funciona. O ciclo da plataforma é fechado, com produção garantida, e o consumidor pode ter a certeza de que a roupa que ele doou terá um destino correto”, reforça Jonas.

Para fazer o download do app Plataforma Circular, acesse o link:
https://www.plataformacircular.app/

O processo de reciclagem têxtil, que pode ser mecânico ou químico, tem um mercado potencial e tanto aqui no país, segundo os empresários, mas há fatores que acabam interferindo para que a prática não tenha um desempenho tão bom quanto poderia. Entre eles, uma cultura de destinação correta dos resíduos têxteis, tanto por parte das indústria quanto dos consumidores, já que todos os elos da cadeia tem sua parcela de responsabilidade; a falta de uma política pública que dê direcionamentos a esses resíduos, que possuem especificidades diferentes dos outros resíduos sólidos; e se estes resíduos não chegam ao lugar correto, com uma boa estrutura de logística reversa, não há volume suficiente para a reciclagem, consequentemente, não despertando o interesse das indústrias em sua utilização para a produção em escala, pois o processo se torna oneroso.

José Guilherme, que lida diariamente com essas indústrias, aponta mais uma questão para a reciclagem mecânica, presente no país desde os anos 1980: maquinários. “Nossa indústria é muito generalista e precisa de maquinários mais específicos para a reciclagem têxtil, a fim de gerar um produto de melhor qualidade e de boa aceitação pelo consumidor.”

Uma outra opção mais recente é a reciclagem química têxtil, a qual, segundo o CEO da Cotton Move, seria ótimo se tivéssemos aqui no Brasil, especialmente para reciclar fibras sintéticas. Mas devido ao seu custo (intangível nas palavras do empresário) no mercado nacional, ainda é um projeto para longo prazo.

Na reciclagem química, os equipamentos são de altíssima tecnologia, e seria ótimo se tivéssemos à disposição no Brasil, especialmente aos produtos sintéticos. Mas para um país que não tem nem saneamento básico instalado é um investimento intangível para o momento, e precisa ser escalado lá fora.

“Primeiro, a reciclagem química têxtil deve ser escalada lá fora, onde foi criada e está sendo aprimorada; depois, é necessário um equipamento moderníssimo para a separação das fibras e reaproveitamento das matérias-primas. E aí vêm os problemas: você conseguiu separar polpa da celulose, a poliamida e o poliéster, mas onde vai extrusar cada uma? Além de tudo, é necessária uma planta fabril para produzir os produtos químicos que entrarão no processo, que necessita ser de circuito fechado para não ser mais um fator poluente.”

TENCEL™ DESTACA INICIATIVA DE RECICLAGEM DE FIBRA

Foto: Textil Santanderina / Divulgação

O Grupo Lenzing, um dos principais produtores globais de fibras especiais à base de madeira, apresentou a fase inicial da “Iniciativa de Reciclagem de Fibras” da TENCEL™, ao lado de seus valiosos parceiros industriais, Artistic Milliners (Paquistão); Canatiba (Brasil) e Textil Santanderina (Espanha). Dedicada a impulsionar a circularidade na indústria têxtil global, a nova iniciativa começa com a produção de tecidos denim derivados de fibras de lyocell da marca TENCEL™, recicladas mecanicamente. Com o uso de resíduos de lyocell pré-consumo em escala comercial, a iniciativa redefine o futuro circular de uma indústria de denim sustentável globalmente.

Os tecidos produzidos com fibras TENCEL™ Lyocell recicladas mecanicamente apresentam uma estética “próxima ao algodão”, mantendo as principais características das fibras TENCEL™ Lyocell, como respirabilidade, caimento suave, toque suave na pele e conforto duradouro. De acordo com a equipe de desenvolvimento de produto da Canatiba, são ideais para o denim.

“Ao contrário do algodão, o novo tecido mantém suas características em relação às fibras virgens, como o comprimento, a resistência e todas as propriedades físicas, além de ser supermacio ao toque. Vem de um processo totalmente limpo e sustentável que não envolve consumo de água ou produtos químicos. No Brasil, as fibras de lyocell recicladas mecanicamente têm um forte potencial de escala entre grandes marcas e lojas de departamento.”

UPCYCLING

Avisa que é ela! Agustina Comas é, sim, nossa maior referência quando se fala em upcycling industrial na moda brasileira. A designer têxtil industrial e consultora uruguaia aportou no Brasil há quase duas décadas, a fim de aplicar e difundir a técnica, até então não tão aplicável para produção em escala. Mas ela conseguiu desenvolver uma maneira por meio de sua marca, a Comas, que trabalhava com camisas com pequenos defeitos, vindas de outras confecções, para criar um produto.

Ela conta que atualmente está trabalhando com marcas e fabricantes em duas modalidades que se conectam: por um lado, diretamente com as marcas, desenvolvendo produtos e criando segundo os briefings de estilo; por outro, conectando com o desenvolvimento dos meios produtivos para viabilizar o upcycling industrial como prática no mercado.

Agustina Comas, referência em upcycling industrial no Brasil./ Divulgação

“Ao contrário do processo convencional da moda, o qual os princípios que norteiam o trabalho de desenvolvimento são puramente estéticos e conectados a uma necessidade comercial, respondendo a inputs de tendências, cartelas de cores e materiais, etc., nesse processo de upcycling, conectamos esses inputs de criação e o olhar da marca com o desenvolvimento das técnicas de upcycling industrial possíveis de ser implementadas no fornecedor. É um método de criar e desenvolver produtos, articulando as necessidades dos negócios com a busca da resolução do problema do resíduo”, explica.

Entre alguns cases importantes, Agustina cita dois bem recentes: um com a marca Rani, e o outro com as Lojas Renner.

“Para cada cadeia produtiva, desenvolvemos uma técnica específica de implementação do upcycling industrial que está vinculada ao tipo de resíduo que é gerado e ao maquinário utilizado dentro da indústria. No caso da Rani, estamos trabalhando com a tecnologia Oricla Elástico®, que é um tecido desenvolvido por meio de uma joint venture entre a Confecções T.Christina e a Comas, com o objetivo de reduzir a geração de resíduos na fase de corte dos produtos da fábrica, visto que a sobra de corte da confecção significa um grande problema ambiental, no Brasil e no mundo. Costurando retalhos de forma sistematizada, fazemos novos rolos de tecido para cortar peças para roupas fitness dentro da fábrica. É importante destacar que no processo convencional, e nos melhores dos casos, esse tipo de material vai para reciclagem, como é na T.Christina com seu parceiro Momo Ambiental, mas que na maioria das confecções terminam em lixões e aterros. O objetivo dessa tecnologia é atingir o aproveitamento máximo do material que a fábrica corta, utilizando retalhos com formatos irregulares para confeccionar novos tecidos e, dessa forma, poder manter o valor desse material e manter, no fluxo da moda fitness, a máxima quantidade de material.”

A Rani é a marca do grupo Confecções T.Christina e a primeira a colocar esta tecnologia no mercado e a criar uma linha upcycling na moda fitness. Agustina diz que é o laboratório de inovação e teste de Oricla Elástico®, que já está em fase de escalonamento, disponível para todos os clientes da T.Christina como uma alternativa de tecido mais sustentável, e negociações já acontecendo com as maiores empresas de varejo.

Rani: marca do Grupo T.Christina é a primeira a lançar uma linha fitness feita com upcycling. / Divulgação

Luanna Cicolo, fundadora da Rani, conta que trabalhou por 13 anos na Confecções T.Christina na produção de moda fitness para grandes magazines. “Sempre tive vontade de ter a minha própria marca, mas não via muito sentido em produzir de forma convencional, simplesmente porque não queria fazer mais do mesmo num mundo já tão cheio de excessos. Quando conheci Agustina Comas e a sua proposta de upcycling com a T.Christina, entendi que existiam maneiras muito mais interessantes de fazer moda. A Rani nasceu desse olhar de otimizar recursos, de reduzir resíduos têxteis e de mostrar aos consumidores que é possível uma roupa confortável, de qualidade e linda para praticar atividades físicas”, detalha.

Para escalar a produção, Luanna diz que estão trabalhando na parte de estudo de mercado e análise de público, pois, devido ser um produto muito diferente do comum, sentem a importância de pesquisar bem essa comunicação. Ela reforça que estão em fase de testes, consolidando aos poucos o consumidor da marca.

“Com isso, demos uma reduzida na velocidade para melhor avaliação do que fará mais sentido, e à medida que conquistarmos espaço, continuaremos apostando nessa forma de produção, só que em maior escala, para mais pessoas se vestirem com essa solução. A resposta tem sido positiva, entendemos que o valor do produto é percebido e celebrado. A complexidade do modo produtivo não é a mesma que um processo de total transformação como o upcycling. Ainda estamos estudando a permanência desse formato. É tudo novo e ainda um desafio!”

O foco da Rani agora está voltado ao produto feito a partir do upcycling com o tecido Oricla Elástico®. “Somos a primeira marca a usar essa matéria-prima, mas já trabalhamos com peças feitas com tecidos sobrantes, como as ‘pontas de cortes’.”

Coleção Re Ciclo, da Renner, com upcycling industrial escalável, desenvolvido por Agustina Comas./ Divulgação

Já o trabalho da Comas com a Renner teve início em 2016, com um trabalho focado no impacto social por meio do Instituto Lojas Renner, com capacitações e disseminação das técnicas de upcycling entre os grupos de empreendedoras que a varejista apoia.

Depois, com a Via Instituto, departamento de sustentabilidade e departamento de pesquisa, a Comas chegou ao departamento de produto e nos fornecedores da Renner, onde seu trabalho é chave para contribuir com os Compromissos 2030 da varejista. “Neste formato de trabalho, implementamos o upcycling industrial como um processo escalável e viável como modelo de negócio dentro da cadeia do jeans junto à YD, fornecedora da Renner e parceira industrial da Comas, na qual fizemos uma coleção a partir de peças de segunda qualidade e restos da produção do fabricante, a Re Jeans. Conseguimos manter esses materiais no fluxo da cadeia de jeans e, agora, estamos entendendo com a Renner e a YD como vamos ampliar essa iniciativa para uma escala maior”, conta Agustina.

Outra marca que investiu em sua primeira coleção feita em upcycling é a Malwee, que convidou a À La Garçonne, que tem Alexandre Herchovitch à frente do estilo e Fábio Souza na direção criativa. A escolha, de acordo com Audrei Russo, deu-se pelo propósito de ambas as marcas em produzir roupas de forma consciente, prezando pelo design funcional com qualidade, conforto e movimento. E a À La Garçonne, no caso, conseguiu levar o upcycling às passarelas.

Lançada em março, a collab possui peças criadas a partir de tecidos e artigos em jeans que estavam parados no estoque da Malwee, somando quase 4 toneladas em matérias-primas.

Collab Malwee e À La Garçonne: coleção foi feita por meio de upcycling de 4 toneladas de estoque parado. / Divulgação

“Uma das ideias disruptivas era justamente usar materiais em estoque e, principalmente, ressignificar em escala industrial o estoque de peças em jeans. Fazer ressignificação em peças únicas é relativamente simples, o que fizemos foi inédito na moda, que é a ressignificação em série de peças prontas em estoque. Do ponto de vista criativo, a grande inovação foi a utilização de técnicas de corte e estamparia com baixíssimo impacto ambiental e lavanderia com quase zero uso de água, pois os jeans utilizados já estavam no estoque e eram peças finalizadas de coleções passadas da Malwee. Para que houvesse menor desperdício de matéria, trabalhamos com estamparia a laser nessa linha de produtos, este processo nos permitiu um exercício criativo de upcycling em escala industrial para deixar os produtos com o DNA de ambas as marcas”, conta Audrei.

“O maior desafio foi, sem dúvida, trabalhar a customização e a confecção das peças com todas as limitações impostas, mantendo o baixo impacto ambiental, e atingir o objetivo de desenvolver um mix interessante e desejável para ambos os públicos com um ticket médio acessível. Todo o resultado de estilo e baixo impacto ambiental só foi possível pelos recorrentes investimentos da Malwee em tecnologia e inovação, como no Lab Malwee Jeans, uma espécie de “Lavanderia 5.0”, com tecnologia inédita na América Latina”, reforça.

2nd HAND REPAGINADO

O 2nd hand, ou brechós, ou “preloved”, ou seja, a venda de peças de segunda mão, não é recente, já existe há décadas. Mas o status e o formato que ganhou recentemente, sim.

Da lojinha empoeirada ao bazar da igreja, o retrofit dos brechós ganhou roupagens de lojas tradicionais de varejo, com araras, organização, visual merchandising e, inclusive, plataformas online dedicadas, ou “brechós digitais”, como diz Patricia Sant’Anna, antropóloga e CVO da Tendere Pesquisa de Tendências e Soluções Criativas, que aponta um crescimento entre 15% e 20% neste mercado, de acordo com informações do Boston Consulting Group.

“Isso mostra que a moda de segunda mão não é mais vista como roupa velha ou algo do tipo, pelo contrário. Essas peças costumam ser mais acessíveis, hoje existe uma curadoria, inclusive em peças de marcas de fast fashion, como da Zara, que estão sendo vendidas em 2nd hand, o que antes não era tão comum”, analisa.

No caso dos “brechós digitais”, tendência lançada pelo Enjoei, a visibilidade do negócio se tornou tamanha a ponto de grandes grupos, como Lojas Renner e Arezzo&Co, investirem no formato, que pode, inclusive, ser uma fonte de retroalimentação ao upcycling e reciclagem têxtil. Entre os principais fatores para esse fenômeno, Patricia destaca, além do preço mais em conta, os novos hábitos dos consumidores com maior consciência ambiental.

“Para as confecções, acredito que o impacto mercadológico em relação ao 2nd hand está nos processos produtivos, que não serão mais alucinados. Pode reduzir a lucratividade? Sim, mas também ganhar em qualidade, tanto do produto quanto do trabalho das pessoas que estão envolvidas, tornando-se um ciclo mais saudável e sustentável a todos. Isso se as confecções compreenderem que lucro não é só dinheiro, mas poder fazer seu trabalho com melhor qualidade, tornando a vida de todos os envolvidos mais sustentável”, destaca Patricia Sant’Anna.  

Repassa, fashiontec 2nd hand comprada pela Lojas Renner.

Eduardo Ferlauto, da Renner, endossa o alto potencial de crescimento do mercado de segunda mão, que cresceu 25 vezes mais rápido do que o segmento de moda tradicional, em âmbito mundial. No Brasil, é um mercado hoje que fatura cerca de R$ 7 bilhões, mas deve alcançar R$ 31 bi até 2025, impulsionado pelos consumidores das gerações Z e millenial. Entre o perfil consumidor estão as mulheres, em ampla maioria, entre 27 e 41 anos, que buscam ou por roupas mais acessíveis ou estão alinhadas à ideia de sustentabilidade.

“Este segmento tem alto potencial de crescimento e é uma das grandes tendências do varejo de vestuário. Em 2021, a Lojas Renner S.A. realizou a aquisição do Repassa, uma transação alinhada com o propósito e valores ESG e com a estratégia de ecossistema da companhia. O novo serviço entrega valor aos clientes, complementando sua jornada, assim como cria nova avenida de receita, maior recorrência e lifetime value. Adicionalmente, reforça o objetivo da Lojas Renner de estimular o consumo consciente e a ampliação da vida útil das peças”, explica Ferlauto.

Fundado em 2015, o Repassa, que já pertenceu ao Grupo Malwee, é uma startup nativa digital, com sustentabilidade no centro, com o propósito de estimular o consumo consciente e prolongar a vida útil de roupas, calçados e acessórios em bom estado de conservação, gerando impacto ambiental e social positivo nesse processo.

Já com um público de maior poder aquisitivo, veio nesta esteira o Cansei Vendi, um brechó online de artigos de luxo e sustentáveis que, inclusive, fez uma collab no final de 2022 com a Ventana, marca de upcycling que transformou gravatas Armani, Hermès e Loewe em corset de seda e um moletom infantil Moschino em saia, e desconstruiu calças para produzir a saia plus size da coleção, vendida com exclusividade no Cansei Vendi.

“Foi a primeira vez que duas empresas se juntaram para fomentar o conceito de circularidade indo além da compra e venda, reutilizando o que já existe para contar novas histórias”, afirma Leilane Sabatini, CEO do brechó de luxo.

Leilane Sabatini, CEO do brechó de luxo Cansei Vendi./ Divulgação

Essa fatia do mercado 2nd hand deve chegar à casa dos US$ 26,5 bilhões até 2028, segundo dados da Research and Markets. Em 2022, atingiu o faturamento de US$ 16,6 bilhões somente na Europa, de acordo com o Boston Consulting Group.

“O Cansei Vendi é hoje o principal player no segmento de alto luxo no Brasil, e vale lembrar que nossa atuação é bastante nichada”, destaca Leilane.

“Existimos há 9 anos – completaremos 10 em 2023 –, e estamos crescendo 200% ao ano. Temos muita convicção de que o mercado de 2nd hand de luxo deixou de ser o ‘mercado do futuro’ e é já o mercado do presente. Estamos aqui para prover segurança aos nosso clientes, tanto os que vendem quanto os que compram, e garantir peças autênticas das melhores marcas de luxo do mundo – de segunda mão, é claro!”

VICUNHA E CALVIN KLEIN BRASIL DESENVOLVEM TECIDO A PARTIR DE CAMISETAS QUE SERIAM DESCARTADAS

Divulgação Vicunha e Calvin Klein

A Calvin Klein Brasil, em parceria com a Vicunha, criou o Recyckle, um novo tecido exclusivo originado do estoque obsoleto de mais de 4 mil camisetas da Calvin Klein (100% algodão) que seriam descartadas. A partir da malha desfibrada, foi possível gerar menos resíduos, atuando de forma circular por meio do uso de matéria-prima reciclada. Todo o processo – da desfibragem ao produto final, calças jeans, no caso – passou por um rígido controle de produção, para que as peças pudessem ter, além de alta qualidade, rastreabilidade. O Recyckle tem em sua composição 72,4% de algodão padrão certificado e 27,6% de algodão desfibrado, e a certificação internacional GRS (Global Recycled Standard).

Renata Guarniero, gerente de marketing da Vicunha, conta que a ideia foi conjunta, pois enxergaram a oportunidade de criar outro produto que fosse sustentável, inovador e reduzisse o impacto ambiental.

“Este foi o primeiro projeto neste âmbito que criamos em parceria com um de nossos clientes”, diz Renata. “Para a Vicunha, a sustentabilidade é um dos principais pilares, por isso estamos sempre buscando parcerias com empresas que compartilhem dessa mesma visão. Acreditamos que é fundamental trabalhar em conjunto para promover uma indústria de moda mais consciente. Assim, buscamos colaborações responsáveis com todos os agentes da cadeia da moda, desde fornecedores de matéria-prima até designers, com o objetivo de desenvolver soluções sustentáveis e inovadoras para enfrentar os desafios do nosso setor. Pretendemos dar continuidade a este projeto com a Calvin Klein, e, atualmente, estamos em conversa com outras marcas para o desenvolvimento de projetos similares.”

ABNT EMPENHADA NA NORMATIZAÇÃO DE FIBRAS TÊXTEIS RECICLADAS

Está em curso um estudo conjunto entre a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) para criar uma normatização para fibras têxteis recicladas. A primeira reunião da Comissão de Estudo Especial de Normatização Técnica de Fibras Têxteis Recicladas e Produtos Derivados (fios e tecidos) aconteceu em março, a fim de determinar parâmetros e um calendário para 2023 que trabalhará em duas frentes: o projeto de norma 1, para fibras têxteis recicladas e seus derivados; e o projeto de norma 2, de nomenclaturas para materiais análogos e processos inovadores de reciclagem. Depois do consenso da comissão de estudo, os projetos seguem para votação nacional e, uma vez discutidos os votos, vão para homologação e uso da sociedade.

Inovadora também é a tomada de decisão em normatizar algo tão dificultoso, mas necessário, no setor têxtil, algo pioneiro no mundo. “Desconhecemos se há outra entidade de normalização desenvolvendo o tema”, diz Maria Adelina Pereira, gestora do Comitê Brasileiro de Têxteis e do Vestuário da ABNT. “Alguns magazines multinacionais comunicaram que também desconhecem e que, em suas matrizes, aplicam-se as normas dos tecidos sem fibras recicladas, porém com parâmetros internos estabelecidos de acordo com a exigência do cliente, que até aceita alguns pequenos defeitos, mas que não pode tolerar uma alteração dimensional exagerada, pois implica em não caber mais na roupa, por exemplo.”

Ela conta que a iniciativa partiu da demanda à ABNT de um grande magazine que trabalha intensamente a questão da sustentabilidade, observando que alguns tecidos fornecidos como sustentáveis estão necessitando de normas para apoiar a quem fabrica, a quem faz a confecção e ao consumidor final consciente de sua meta de ajudar o meio ambiente. A partir dessa demanda, consultaram produtores de fios e tecidos interessados em criar parâmetros de qualidade para fornecer ao mercado algo de boa durabilidade, em um espaço de concorrência leal e de responsabilidade real com o ambiente, não apenas produtos que apresentam greenwashing e nada colaboraram para a redução do descarte têxtil.

“Não se pode admitir uma roupa que encolha, altere de cor, tenha propensão à formação de pilling e outras intercorrências que inviabilizem seu uso, levando ao descarte e fomentando o problema do meio ambiente”, diz Adelina. “Nosso objetivo é estabelecer os parâmetros por meio de estudos e ensaios com tecidos do mercado, comparando tecidos de monomaterialidade e tecidos com combinações de fios e fibras de diferentes composições. Estes últimos são menos recomendados, pois implica dificuldade de reaproveitamento posterior ao seu uso como roupas.”

Para Adelina, a grande iniciativa de construir essas normas de desempenho auxiliará toda a sociedade e impedirá que esses tecidos e roupas caiam no descrédito, fato este que leva o consumidor a desistir de comprar esses materiais que tanto ajudam o meio ambiente, sobretudo no conceito da economia circular.

COLONIALISMO DE RESÍDUOS

Já ouviu falar do termo “colonialismo de resíduos”? Ele é recente, mas seus efeitos são seculares. Fernanda Simon, porta-voz do Fashion Revolution Brasil, explica que o termo se origina do envio de resíduos e roupas não desejados de países europeus e dos Estados Unidos a nações mais carentes, sem condições de dar um destino sustentável, como a reciclagem ou decomposição. Na prática, é jogar o lixo no quintal do vizinho só porque a casa dele parece mais pobre, e tirar o problema de vista. Nessa linha de raciocínio também entra outro termo: o racismo ambiental, que ao não ser tratado com a seriedade de que precisa, tem impactado diretamente nas condições de vida e ecossistemas de nações economicamente vulneráveis.

Cemitério de roupas no deserto do Atacama. / Foto: Electrolux

BREAK THE PATTERN

Reaproveitar as roupas que já temos: este foi o mote para a campanha “Break The Pattern, da Electrolux, que quer incentivar os consumidores a ter maior cuidado na lavagem de suas roupas para que durem mais, em vez de irem parar nos lixões e “cemitérios de roupas”, como o do deserto do Atacama, ‘quebrando o padrão’ de consumo desenfreado. Para conhecer a campanha e sua história completa, com a criação da The Atacama Collection, acesse os links:

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