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A RECONSTRUÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL

Diante da maior catástrofe ambiental já sofrida no estado e uma das maiores do país, cidadãos, empresas e poder público se unem para aplacar as consequências das enchentes em terras gaúchas

O Brasil sempre teve seus extremos de calor, seca e frio por ser um país continental. Fortes chuvas e enchentes também vêm ocorrendo com maior frequência, já tendo provocado situações lamentáveis, por exemplo, os deslizamentos em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, e no litoral Norte de São Paulo. Mas imaginar um estado inteiro embaixo d’água, nunca, ao menos recentemente. De seus 497 municípios, 471 foram atingidos, ou seja, praticamente 95% do Rio Grande do Sul ficou submerso, de acordo com a Defesa Civil.

Em uma combinação explosiva de fatores – alguns já de conhecimento do poder público, como obras que deveriam ter sido feitas há décadas, mas foram postergadas –, as alterações climáticas e as conjunções meteorológicas anormais e repentinas, que começaram com as chuvas no dia 27 de abril e escalaram no início de maio, foi escancarado o quanto precisamos levar a sério as necessidades e a segurança da população a fim de prevenir desastres como esses. Ou pelo menos minimizá-los, pois estamos lidando com vidas.

No caso do Rio Grande do Sul, que possui 10,8 milhões de habitantes, mais de 2,3 milhões foram atingidos pelas enchentes e 654 mil tiveram que deixar suas casas. É um trabalho incalculável a ser feito, mas urgente, e precisa ser planejado e executado da melhor forma à população, e não a interesses de terceiros.

PERDAS NA RECEITA ESTADUAL

De acordo com a terceira edição do Boletim Econômico-Tributário da Receita Estadual, divulgados no site do governo gaúcho, a perda de receita vinda da arrecadação do ICMS no estado, só no mês de maio, foi de 15,6%, comparada ao mesmo período de 2023. Na apuração, foi mostrado que 91% dos 278 mil estabelecimentos contribuintes do ICMS no Rio Grande do Sul estão localizados em municípios considerados em estado de calamidade ou emergência, e 44 mil desses estabelecimentos, responsáveis por 27% da arrecadação estadual, estão em áreas inundadas. Segundo o governo gaúcho, estão sendo tomadas medidas como a prorrogação dos prazos de pagamento do ICMS e do Simples Nacional em todos os seus municípios.

Nos setores têxtil e de vestuário, o governo aponta que a queda nas vendas foi de 17,2%, mas de acordo com Juliana Fraccaro, presidente do Sindicato das Indústrias do Vestuário do Estado do Rio Grande do Sul (Sinvergs), a porcentagem foi bem maior. “O vestuário foi o setor mais afetado, com queda equivalente a 49% no início de maio, com a diminuição das vendas no Dia das Mães”, destaca.

Já o impacto financeiro em relação a estoque, maquinário e estrutura física foi mais individual. “Ainda há empresas que não conseguiram acessar seu espaço físico, por se localizarem em regiões fortemente afetadas, como é o caso do bairro Sarandi, em Porto Alegre”, comenta. A presidente do Sinvergs ainda diz que outra questão relevante foi a redução nas compras internas dos têxteis e vestuário, com queda de aproximadamente 44%, mostrando que as enchentes afetaram não só as confecções, mas também os varejistas de moda de todo o estado.

UM PASSO DE CADA VEZ

No setor  coureiro-calçadista, uma pesquisa levantada entre a Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), Associação Brasileira das Empresas de Componentes para Couro, Calçados e Artefatos (Assintecal) e Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB), apontou que 48% das cerca de 3 mil empresas e mais de 7,2 mil trabalhadores do setor foram atingidos pelas enchentes no Rio Grande do Sul, segundo maior produtor de calçados e artigos de couro, que junto ao Ceará dominam metade da produção nacional. Vale mencionar que quase metade (44,4%) dos produtores gaúchos do setor coureiro-calçadista está concentrada na região do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo, Novo Hamburgo, Canoas, Campo Bom, Sapiranga, Esteio, Araricá, Nova Hartz, Ivoti, Nova Santa Rita, Dois Irmãos, Portão, Estância Velha, Sapucaia do Sul) e aproximadamente 20% na região do Vale do Paranhana (Igrejinha, Parobé, Rolante, Taquara, Três Coroas, Riozinho), ambas próximas à região metropolitana de Porto Alegre.  

Ana Carolina Grings, vice-presidente e diretora de Produto da Piccadilly. / Divulgação

Uma dessas empresas de calçados é a Piccadilly, que possui toda a sua operação no Rio Grande do Sul: a produção fica nas cidades de Rolante e Teutônia, e o centro administrativo e de matérias-primas em Igrejinha.

“Nossa única unidade afetada foi a de Igrejinha, pois fica bem no centro da cidade, que é cortada por um rio, o Paranhana. Tivemos parte da matéria-prima, mas as unidades fabris continuaram trabalhando normalmente, pois ficam em pontos mais altos das cidades”, revela Ana Carolina Grings, vice-presidente e diretora de Produto da Piccadilly.

Ela conta que, quando tudo aconteceu, logo fizeram um mapeamento de seus colaboradores – são 2.500 pessoas, e cerca de 20% do quadro foi total ou parcialmente afetado, alguns perderam tudo. “Focamos em fazer contato com essas pessoas e entender o que havia acontecido, usamos todas as nossas lideranças para ajudar nesse corpo a corpo com eles, pois tivemos que mapear o que precisavam e começamos a agir rápido, com recursos dos próprios acionistas.”

Ao mesmo tempo, formaram um grupo de voluntários dentro da própria empresa, além dos que já participam de ações durante todo o ano. “Uma das nossas premissas de sustentabilidade é ter 5 mil horas/ano de voluntariado, e só naquela primeira semana foram mais de mil horas. Foi a empresa toda se mobilizando”, destaca.

“O foco foi em tentar reerguê-los o mais rápido possível para que pudessem voltar para casa: providenciamos cama, colchão, armário, pia e fizemos uma compra grande com base no mapeamento, para poder fazer as entregas. Fora isso, houve entrega de cestas básicas, antecipação de salário e de décimo-terceiro, roupas de cama, enxoval; trabalhamos muito para que o pessoal se restabelecesse e pudesse voltar às atividades. Vejo que uma empresa que gera tantos empregos, quando acontece uma situação como essa, nosso compromisso social aumenta, pois, infelizmente, muitas empresas foram atingidas e não estão nem conseguindo operar, faturar, e precisam ver que existe vida, que teremos que trabalhar muito para nos reerguermos, e vamos superar tudo isso”, reforça Grings.

Roberto Argenta, presidente da Calçados Beira Rio S.A. / Divulgação

Para a Calçados Beira Rio S.A, a qual possui diversas marcas no grupo, esta foi a terceira vez, em menos de um ano, sofrendo com enchentes e desmoronamentos, como os ocorridos em 2023. Localizadas no Vale do Taquari, que abrange 40 municípios, entre suas 11 unidades produtivas, a de Roca Sales foi a mais atingida, assim como no ano passado.

“Quando aconteceu a enchente deste ano, imediatamente providenciamos a reconstrução da unidade e a reforma de maquinários para normalizar a produção”, conta Roberto Argenta, presidente da Calçados Beira Rio S.A.“Como o setor calçadista está concentrado no Vale do Sinos, no Vale do Taquari e do Rio Pardo, é muito importante que se faça a reconstrução das estradas, pontes e, acima de tudo, trabalhar para que se faça a dragagem dos rios, para evitar os danos das enchentes. Este é um ponto urgente.”

E como ajuda é sempre bem-vinda e, nesse caso, mais do que necessária, foi criada uma campanha justamente para este fim: o Movimento Próximos Passos RS, encabeçada pela Abicalçados, Assintecal e CICB. O objetivo é reconstruir o ecossistema calçadista gaúcho com foco nas pessoas, os trabalhadores desta indústria atingidos pela catástrofe. A meta é arrecadar R$ 20 milhões.

“Somos um setor intensivo em mão de obra, são milhares de pessoas que vivem da atividade. A reconstrução, primeiro da vida dessas pessoas, é o nosso principal objetivo com a campanha. É a partir da dignidade e das condições de moradia das famílias que dependem da cadeia calçadista que teremos um setor inteiro restabelecido”, diz o presidente-executivo da Abicalçados. 

Silvana Dilly, superintendente da Assintecal, diz que a união das entidades e empresas que fazem parte do ecossistema do setor calçadista é fundamental para a recuperação da atividade. “Um período de grave crise, com uma catástrofe climática como nunca vista no Rio Grande do Sul, exige medidas urgentes de auxílio. A resposta da união entre entidades e empresas, não só do estado, mas de todo o Brasil, é igualmente histórica e vai ajudar milhares de pessoas envolvidas na produção de calçados.”

José Fernando Bello, presidente-executivo do CICB, endossa. “As cheias impactaram a vida nesse território, mas, ao mesmo tempo, trouxeram à tona uma potência imensa de solidariedade e cooperação entre empresas e pessoas. Vamos juntos superar esse desafio.”

RESILIÊNCIA

A designer e pesquisadora têxtil gaúcha Tatiana Laschuk, que mora em Porto Alegre, viu de perto os efeitos da calamidade que assolou o estado. Assim como muitos outros voluntários, ela foi incansável nas ações de ajuda a abrigos e resgate de animais, e diante de tudo o que presenciou, dá seu relato particular, trazendo um recorte sobre os setores têxtil e de confecção.

Tecidos espalhados em meio ao lixo das enchentes no 4.º Distrito, em Porto Alegre. /
Foto: Tatiana Laschuk

“Todas as empresas foram afetadas de alguma forma, seja direta ou indiretamente. Isso porque muitas confecções, principalmente as pequenas, trabalham com mão de obra terceirizada. Então, mesmo que a sede da empresa não tenha sido atingida, as costureiras, os cortadores, os fornecedores de matérias-primas e processos de beneficiamento como estamparias, foram afetados. Em Porto Alegre, na região do 4.º Distrito, que é considerado um hub de inovação e inclui os bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes, Farrapos, Humaitá e Marcílio Dias, foi o espaço na cidade em que mais empresas desse segmento foram atingidas. Lá há uma concentração de empresas do setor que atuam em diferentes frentes, sejam pequenas confecções, prestadores de serviço, distribuidores de tecidos e aviamentos. No bairro Navegantes, que concentra algumas lojas e distribuidoras de tecidos, presenciei uma cena em que rolos e bandeiras de tecido estavam sendo descartados em meio a um mutirão de limpeza do espaço. Rolos e mais rolos de tecidos ficaram submersos por um mês debaixo d’água lamacenta das enchentes, com descarte incerto. Centenas de metros de tecido com lama entranhada em seus fios e filamentos de difícil recuperação, seja pelas manchas, seja pelo cheiro forte do lodo.”

Ateliê da CÓS, onde as máquinas de costura ficaram submersas. / Foto: Arquivo Pessoal

Justamente no 4.º Distrito estão as empresas CÓS e Aragäna, diretamente atingidas com os alagamentos. Marina Anderle Giongo, gestora da CÓS – Costura Consciente e Design Sustentável, e guardiã do Banco de Tecido POA, conta que esta é uma região industrial que foi muito incentivada a instalar empresas, sobretudo das áreas de cultura e economia criativa, e a CÓS, que presta serviços de costura, consultoria e educação em moda, fica dentro do Centro Cultural Vila Flores, no bairro Floresta.

“Em nosso ateliê, que fica no térreo, entrou aproximadamente 1,1 metro de água, deixando as máquinas de costura e mesa de corte submersas. Perdemos linhas, tecidos, peças que já estavam costuradas ou em processo, e a mesa de corte, que era de MDF. Quanto aos maquinários, fizemos uma primeira limpeza: nós mesmas abrimos, limpamos motor, peças, etc., mas não sabemos se vão funcionar. Os tampos também foram perdidos”, lamenta. Mariana faz um relato de como estão lidando com a situação. “Ficamos quase um mês fora do nosso ateliê, sem conseguir acessá-lo devido ao espaço físico estar comprometido e os equipamentos também. Algumas das mulheres que participam da CÓS como costureiras e modelistas foram atingidas, pois moravam em regiões que alagaram, tiveram que sair de casa ou ir para a casa de parentes, abrigos; eu mesma, que moro próxima ao ateliê, precisei sair da minha casa. Tudo isso afetou nossa dinâmica, pedidos que estavam em andamento e acabou atrasando, novos projetos que gostaríamos de iniciar, mas ainda não deu. Teve ainda a questão das perdas materiais e emocionais, pois tudo foi construído com muito trabalho e tempo dedicado da nossa vida com muito carinho, e perder essas coisas é muito triste para nós. Além disso, estamos deslocadas do nosso espaço. Desde a primeira semana das enchentes, começamos a trabalhar em um mutirão de costura voluntária de peças para doação, em um ateliê emprestado na Missão Pompeia, uma igreja aqui de Porto Alegre que acolhe refugiados e imigrantes. Nesse mesmo lugar, conseguimos fechar uma parceria de permuta e estamos trabalhando lá enquanto não temos acesso ao nosso espaço, para conseguir terminar os pedidos que estavam em andamento e produzir novos lotes de produtos para doação. Estamos muito gratas com essa permuta e a nossa contrapartida é dar um curso de costura e acabamentos para as mulheres migrantes. Mas estamos emocionalmente abaladas, o que interfere no nosso fluxo. Na parte do banco de tecidos, sabendo que a enchente estava chegando, erguemos o que foi possível de material, mas infelizmente a água veio mais forte e alta do que esperávamos. Tivemos que descartar 1/3 dos materiais do banco de tecidos, e isso é muito triste, saber que por tanto tempo prezamos pela reutilização desses materiais e, de repente, eles vão parar em um aterro sanitário devido a uma catástrofe.”

Vizinha à CÓS, a marca Aragäna, que atua por e-commerce em todo o país, também passou apuros. Rita Escobar, uma das sócias, conta que o estoque da marca, que fica também no 4.º Distrito, mas em uma área relativamente longe do Rio Guaíba, ela e os outros sócios não acreditavam que a água chegaria ao prédio, mas por precaução, no dia 3 de maio, quando começaram as enchentes em Porto Alegre, resolveram esvaziar as prateleiras do andar térreo e, no dia seguinte, começaram a receber fotos da rua com as calçadas alagadas.

“Corremos para lá e conseguimos realocar todo o estoque para o segundo andar do prédio, onde fica o nosso escritório. No estoque ficaram apenas os móveis, que acabamos perdendo. Depois dessa data, não conseguimos mais acessar o prédio por 14 dias, devido à inundação. A água invadiu todo o andar térreo do prédio. Ainda estamos entendendo o tamanho do estrago, mas o importante é que toda a nossa equipe e nossas famílias estão seguras e bem.”

Rita ainda relata que, além dos danos materiais, as vendas acabaram caindo muito durante esse período. “Depois de uma semana 100% focados em ajudar nos abrigos como voluntários, envolvidos em doações e ajudando da forma como conseguimos, nós precisávamos voltar a olhar para o nosso negócio, que também estava sendo afetado. O nosso site seguiu funcionando normalmente durante todo o período, porém com um prazo estendido de entrega. Nós não estávamos conseguindo acessar o escritório para fazer a separação e despachar os pedidos, além de que o serviço dos Correios também estava suspenso aqui na nossa cidade. Foi quando resolvemos fazer um vídeo explicando toda essa situação para os nossos clientes e pedindo que não parassem de consumir, não somente da Aragäna, mas de todas as marcas gaúchas. Mesmo que alguma marca não esteja em um local atingido pela enchente, todas estão sofrendo para se restabelecer. As estradas aqui no Sul estão destruídas, o que está dificultando muito o recebimento das fábricas, além de toda a economia que está sendo fortemente afetada.”

Localizada em Caxias do Sul, a Cooperativa de Trabalho Têxtil Galópolis – Cootegal, especializada na fabricação de fios e tecidos de lã e mistos para vestuário e decoração, também teve suas instalações invadidas pela enchente, levando muita lama e sujeira.

Leonardo Rodrigues, gestor comercial da Cootegal, conta que ao lado da empresa há um rio que transbordou entre a noite do dia 1.º para o dia 2 de maio, e que alguns materiais que estavam alocados em paletes no solo foram atingidos. “Perdemos alguns materiais como tecidos, fios e embalagens de papelão, além de equipamentos que também foram atingidos e acabaram apresentando falhas, mas logo foram consertados e tudo já está a pleno funcionamento”, ressalva.

Mesmo com os danos sofridos, a cooperativa doou mais de 2 mil cobertores de lã que foram distribuídos entre os abrigos do Rio Grande do Sul, e está oferecendo a linha econômica, 100% lã, a preço de custo a quem desejar comprar cobertores para doação.

“O nosso mercado é muito sazonal, depende em grande parte do frio, que nos últimos dois anos foi menos intenso e mais curto, o que influencia economicamente os nossos negócios. Associadas a isso, as enchentes prejudicaram muito a logística em todo o Rio Grande do Sul. Desse modo, tanto para recebermos materiais ou escoarmos a nossa produção, ficou mais difícil nas primeiras semanas. Hoje a situação já está mais controlada, as águas já baixaram, as principais limpezas já foram feitas e novos caminhos abertos para auxiliar a logística gaúcha”, ressalta Leonardo.

REDE SOLIDÁRIA

Com a catástrofe no Rio Grande do Sul, diversas questões vieram à tona, entre elas a falta de roupas às pessoas gordas e o acesso aos cuidados menstruais.

Amanda Momente, fundadora da Wondersize, marca de moda plus size especializada no segmento fitness, sediada em Itajaí (SC), conta que logo que os desabrigados pelas enchentes começaram a ir para os abrigos, muita gente entrou em contato com ela para ajudar a encontrar soluções para vestir as pessoas gordas, que, por não terem doações suficientes de roupas que coubessem, estavam sendo obrigadas a se enrolar em lençóis, ou seja, mais um trauma para quem perdeu tudo.

“Eu não sabia o que fazer”, desabafa Amanda. “Então pedi a alguns fornecedores que doassem tecidos para, a princípio, fazer calcinhas, que era uma demanda que estava chegando bastante, e as minhas clientes – temos uma comunidade muito forte –, estavam querendo comprar calcinhas a preço de custo. Porém, nosso desenvolvimento não é barato, pois sempre faço um produto com qualidade, que valoriza o corpo da pessoa gorda. Começamos com 35 kg de tecidos e hoje estamos com mais de 10 toneladas”, conta. Essa quantidade de tecido doada à Wondersize para a confecção de calcinhas, sutiãs e moletons veio por meio de empresas mobilizadas pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Vestuário (Abit), após um vídeo de Amanda viralizar em rede social falando sobre o problema.

Amanda Momente, fundadora da Wondersize. / Divulgação

“Já acumulamos mais de R$ 150 mil em doações e, com essas toneladas de tecidos, acredito que conseguiremos fazer, no mínimo, 10 mil peças. Não resolve tudo, mas deixa as pessoas quentinhas. Acredito que essa operação leve 45 dias. É um pouco desesperador pensar que essas pessoas precisam esperar as peças ficarem prontas, mas é a única solução que temos hoje. E nada disso seria possível sem a comunidade que criamos, que divulgou bastante, os voluntários dos setores têxtil e de confecção, e das faculdades que também se voluntariaram.”

De outro lado, Amanda acredita que essa tragédia e essa situação só escancarou a defasagem que a moda plus size tem. “Para ter uma ideia, nem roupas prontas havia para compramos para doação porque a produção é pequena – 80% das confecções do segmento são de pequeno porte –, ainda mais considerando que no Rio Grande do Sul há uma grande parcela da população que é gorda. O preconceito no Brasil ainda é muito grande e, além disso, há um déficit de profissionais nesse segmento, pois nas faculdades não abordam, tanto que ano passado criei o primeiro curso de moda plus size, pois percebi que as pessoas não tinham onde aprender. Esse momento realmente mostrou o quanto o Brasil não é diverso”, questiona.

Na questão menstrual, a Herself, marca gaúcha de calcinhas e biquínis menstruais com tecnologia 100% nacional, vem realizando um trabalho de suma importância junto às mulheres gaúchas desabrigadas pelas enchentes. Fundada em 2017 pela engenheira química Raissa Assman Kiss, a Herself tem a principal parte de sua operação em Porto Alegre, e outras descentralizadas, distribuídas por São Paulo e colaboradoras em outros estados brasileiros.

Raissa conta que a parte de confecção das peças no Rio Grande do Sul fica na cidade de Guaporé, interior do estado, que ficou toda comprometida e teve que ser repassada a São Paulo para finalização. “Tivemos que pausar e estamos retomando aos poucos.  Mas o grande ponto foi a Herself ter tido esse privilégio de conseguir que a operação acontecesse em mais de um estado, para que tivéssemos um plano de ação seguro com o time”, avalia.

À parte disso, a empresa possui um apêndice comandado por Victoria de Castro, a Herself Educacional, uma escola direcionada à educação menstrual que aborda, além do aspecto biológico, os pilares emocionais, ambientais e sociopolíticos sobre a menstruação.

Juntas, Herself + Herself Educacional lançaram o MenstruAÇÃO RS, um movimento por dignidade menstrual em prol das vítimas das enchentes. O trabalho começou no dia 6 de maio, captando recursos e fazendo doações de protetores menstruais a meninas e mulheres nos abrigos. Até o dia 27 de maio haviam arrecadado R$ 77 mil e distribuído mais de 11 mil protetores. No dia 28 de maio, Dia Internacional da Dignidade Menstrual, anunciaram que o movimento se estenderá por 12 meses, até 28 de maio de 2025, e quem quiser conhecer mais e contribuir pode acessar maosdadaspelosul.org/herself em seu navegador.

“O Menstruação RS foi uma idealização da Herself em função de sermos uma marca gaúcha e trabalharmos com a promoção de dignidade menstrual desde o dia 1.º. Com o contexto de uma tragédia como essa, com tantas vulnerabilidades e espaços de negligência que não estavam sendo atendidos, com certeza a questão da menstruação foi um desses pontos. E, justamente para conectar com marcas e consumidores de outras regiões, estendemos a campanha para que, durante esses 12 meses, sigamos chamando a atenção sobre as necessidades que as pessoas atingidas pelas enchentes estão vivenciando”, explica Raissa.

A H&M Foundation doou US$ 250 mil para a Cruz Vermelha ajudar nos cuidados com os desabrigados no Rio Grande do Sul.

“Temos uma dinâmica para entender que dignidade menstrual e as garantias de saúde menstruais permeiam não somente o absorvente descartável, mas a garantia de ter que ter uma calcinha para alocar o absorvente, acesso à água para pensar em soluções descartáveis, todo o contexto de privacidade, banheiros, saneamento básico, vários pontos que ficaram comprometidos e que afetam muito a autoestima, a sensação de segurança e de cuidado. Também ouvimos diversos relatos de meninas que tiveram sua primeira menstruação nos abrigos, e que bom que pudemos estar perto para pelo menos abrir um diálogo com elas e poder trazer uma nova possibilidade de usar o modelo de protetor menstrual que fizesse mais sentido a elas. Mas o ponto é: como fica daqui para a frente? Pois a menstruação virá de novo, mês após mês, por isso a necessidade de ampliação da campanha.”

SEGUINDO A TRILHA

Nascida no Rio Grande do Sul, a Lojas Renner S.A. é outra empresa que tem se mobilizado bastante para ajudar as vítimas das enchentes no estado. A varejista destaca que, desde o primeiro momento, iniciou ações de acolhimento, liberação e flexibilização de trabalho voltadas aos seus times, bem como apoio aos colaboradores que residem em localidades atingidas para que priorizassem atenção às suas famílias e ao seu entorno. Entre as medidas adotadas, estão suporte psicológico imediato e gratuito e suporte financeiro, por meio da antecipação de férias e do 13º salário, assim como do depósito de um auxílio emergencial aos colaboradores com perdas relevantes. Para garantir a segurança das pessoas,  chegaram a ter 4% das unidades da companhia fechadas temporariamente, considerando a totalidade de seus pontos de venda no Brasil. Atualmente, apenas a loja da Renner no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, permanece fechada. A empresa ainda ressalta que não possui centros de distribuição no Rio Grande do Sul, e que o impacto de fornecimento de produtos vindos de sua rede de parceiros é imaterial. 

Por meio de seu braço social, o Instituto Lojas Renner, a empresa vem promovendo ajudas em diversas frentes e de forma ativa, seja em ações emergenciais, viabilizando resgates de vítimas, fazendo doações, promovendo voluntariado e dando suporte aos seus colaboradores afetados pela tragédia. A varejista fez a doação de 112 mil litros de água, 52 mil itens de higiene e limpeza, 31 toneladas de alimentos e 28 mil cobertores e roupas de cama e banho. 

De acordo com a Renner, nos primeiros dias das inundações fizeram mais de 1.000 resgates nas áreas atingidas, financiando o aluguel de barcos. Também se colocaram na linha de frente da doação de roupas e calçados, onde foram entregues mais de 170 mil peças e, segundo eles, há outros milhares para destinar. “Além disso, nossa marca Ashua está produzindo roupas plus size de inverno especialmente para doação. Nossa atuação envolve ainda a parceria com entidades de referência como o Sesc e a Cufa, que nos apoiam no recebimento e distribuição dos donativos. Com a regional da Cáritas Brasileira, criamos uma conta para que o ecossistema da Lojas Renner S.A. pudesse doar recursos financeiros às regiões atingidas, e o Instituto Lojas Renner dobrou o valor arrecadado. Continuaremos protagonistas na doação de roupas e buscaremos novas articulações e parcerias para atender às demandas que surgem a cada dia, nas diferentes etapas dessa tragédia. Com foco na fase de retomada, nos unimos ao Instituto Ling, no lançamento do fundo Reconstrói RS, que vai financiar obras de alto impacto em conjunto com as comunidades locais”, conta o porta-voz da empresa.

OUTRAS FRENTES

Juliana Fraccaro, presidente do Sinvergs, relata que a primeira necessidade levantada pelas confecções gaúchas associadas com relação às enchentes foi sobre as máquinas de costura e, dessa forma, o sindicato vem se mobilizando para endereçar as demandas.

“Sem o equipamento, não é possível produzir, impactando toda a cadeia. Em parceria com o Senai, possibilitamos o conserto das máquinas de costura de forma gratuita. Com o apoio da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs), ainda estamos buscando alternativas de financiamento a juro zero ao setor para que o retorno seja acelerado, além da intermediação das negociações com o governo estadual sobre isenção de impostos e medidas trabalhistas alternativas para manutenção dos empregos. Essas ações são mais relevantes no curto prazo. Para o médio e longo prazo, estamos avaliando incentivos e projetos de promoção comercial para as marcas locais”, compartilha.

Já o Sebrae anunciou o programa “Juntos, a Gente Supera”, um plano de ação que será implementado em 90 dias. Neste período será feito o diagnóstico da situação e das necessidades da região. Com esse levantamento, todo o trabalho será executado em três frentes: sobrevivência, com foco no mercado e na gestão do negócio; operacionalização, com a reconstrução do acesso a serviços financeiros; e no desenvolvimento da governança dos territórios. O pacote de medidas prevê investimentos na ordem de R$ 102 milhões em ações no Programa de Recuperação Emergencial para o estado.

“No Rio Grande do Sul, o Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas (Fampe) terá cobertura de 100%. Para isso, precisamos trabalhar junto às cooperativas de crédito e às instituições financeiras do estado para que o crédito chegue aos empreendedores. O plano de emergência é do Rio Grande do Sul, apoiado pelo Sebrae Nacional”, ressaltou o presidente da entidade, Décio Lima.

Enquanto isso, a ApexBrasil, além de um aporte de R$ 11 milhões para apoiar o restabelecimento de micro e pequenas empresas gaúchas diretamente afetadas pela catástrofe climática, direcionado à compra de matérias-primas e maquinário, isentará as empresas gaúchas da taxa de inscrição para participar de todas as ações comerciais de exportação realizadas diretamente pela Agência. De acordo com a ApexBrasil, a vigência dessa medida será válida por 6 meses, período em que serão realizados mais de 50 eventos da entidade.

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