TOTAL 90 PODE COLOCAR NIKE EM MAUS LENÇÓIS EM CASO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

De acordo com documentos legais obtidos pelo site Footy Headlines, a Nike deixou expirar o registro da marca Total 90 durante um período de inatividade

A Nike, gigante do trade esportivo, poderá enfrentar sérias consequências após perder o registro da marca Total 90 (T90). A disputa remete a casos célebres de propriedade intelectual, como a antiga batalha da Gradiente com a Apple pelo uso da marca “iPhone”. No centro do imbróglio está a Total90 LLC, empresa com sede na Louisiana (EUA), que entrou com uma ação judicial acusando a Nike de uso indevido da marca, agora sob seu controle legal.

Divisor de águas na linha de chuteiras, jogadores como o britânico Wayne Rooney (ex-seleção inglesa e ídolo do Manchester United), Fernando Torres (ex-seleção espanhola e ex-Atlético de Madrid e Chelsea) e o lateral-esquerdo pentacampeão Roberto Carlos (ex-Real Madrid) foram os principais “embaixadores” do modelo durante as partidas.

De acordo com documentos legais obtidos pelo site Footy Headlines, a Nike deixou expirar o registro da marca Total 90 durante um período de inatividade — o que permitiu à Total90 LLC reivindicá-la formalmente. A companhia norte-americana argumenta que os recentes relançamentos da linha T90, especialmente edições limitadas como o T90 Laser e coleções lifestyle, violam direitos de marca agora pertencentes à empresa da Louisiana.

Para Gustavo Biglia, sócio do Ambiel Bonilha Advogados e especialista em Direito Societário, o caso expõe uma fragilidade comum até mesmo em grandes corporações. “Quando uma empresa do porte da Nike deixa um registro essencial caducar, abre-se um flanco perigoso: terceiros podem se apropriar de um ativo que deveria estar devidamente resguardado. Trata-se de uma falha clássica de governança de marcas que, inevitavelmente, deságua no contencioso. A companhia acaba na situação desconfortável de ter que justificar o direito de usar o próprio nome que ela mesma projetou globalmente”, explica.

Especialista em Propriedade Intelectual, a advogada Giovanna Vasconcellos, do Ambiel Bonilha Advogados, elenca que o ponto central do caso é justamente a negligência com a gestão do portfólio marcário. “Quando uma companhia desse porte permite que um sinal distintivo expire sem renovação, cria um verdadeiro vácuo jurídico daqueles que ninguém quer explicar depois. É praticamente “entregar de bandeja” a terceiros a chance de explorar um ativo que deveria estar integralmente resguardado. Situações assim não apenas enfraquecem a estratégia de marca, como também obrigam a empresa a gastar tempo e recursos tentando reaver algo que, em boa governança, jamais deveria ter escorregado pelas mãos”, afirma.

A situação é ainda mais sensível porque a Nike já estava revitalizando a marca T90 no mercado com lançamentos globais. Outros relançamentos estavam previstos para o ciclo da Copa do Mundo de 2026, acompanhados de colaborações estratégicas, como a parceria com a marca Palace, que faz uso intensivo da sigla “P90” inspirada na Total 90. Uma decisão desfavorável pode colocar esses projetos em risco e impactar linhas que contam com forte apelo nostálgico e comercial.

O dano potencial vai além das perdas imediatas. “Casos como esse têm repercussões reputacionais importantes. A perda de controle sobre um símbolo cultural e esportivo como a Total 90 enfraquece a percepção de solidez na gestão de ativos intangíveis da empresa. É um cenário que lembra a disputa entre a Cisco e a Apple pelo uso do nome ‘iPhone’: a discussão jurídica acaba virando uma questão de identidade corporativa”, argumenta Giovanna.

CASOS EMBLEMÁTICOS

Situações como a da Total 90 não são isoladas no universo da Propriedade Intelectual. Grandes corporações já enfrentaram consequências severas por falhas semelhantes na gestão de seus portfólios marcários, algumas delas emblemáticas.

O caso do Burger King na Austrália é talvez um dos exemplos mais didáticos. Quando a rede decidiu ingressar no país, descobriu que a marca já havia sido registrada previamente por um terceiro. Diante disso, restou à empresa operar sob a denominação Hungry Jack’s, criando uma exceção global e impondo custos expressivos de adaptação, padronização e comunicação.

A Tesla enfrentou um cenário semelhante ao expandir suas operações para a China. A marca já estava registrada por um empresário local, e a empresa precisou negociar, litigar e desembolsar valores significativos para recuperar um ativo imaterial que parecia naturalmente seu. “Esse caso demonstra a importância de registrar sinais distintivos em mercados estratégicos com antecedência”, acrescenta.

A Sony também já passou por situação parecida com a em tela, a marca Walkman na Rússia. Parte dos registros expirou por falta de renovação, e imediatamente terceiros se movimentaram para registrar sinais semelhantes. A empresa se viu obrigada a litigar para tentar reverter uma vulnerabilidade que surgiu unicamente por falhas internas de manutenção. Assim como no caso da Nike, a perda não decorreu de disputa concorrencial legítima, mas de um descuido administrativo que permitiu que o mercado ocupasse um espaço deixado vazio pela própria titular.

Esse conjunto de casos demonstra, inclusive, como os instrumentos internacionais desempenham um papel complementar essencial na estratégia marcária global. Sistemas como o administrado pela OMPI, especialmente o Protocolo de Madri, foram concebidos para facilitar a expansão internacional de marcas, permitindo depósitos coordenados e racionalizando procedimentos entre diferentes jurisdições. Ainda assim, mesmo com esse suporte, a eficácia da proteção depende do cumprimento das exigências locais de cada país, como prazos de renovação, comprovação de uso e observância de registros preexistentes.

“Em contextos como os do Burger King na Austrália, da Tesla na China e da Sony na Rússia, foram justamente essas regras nacionais que determinaram o desfecho das disputas, mostrando que a proteção internacional e a gestão territorial caminham juntas e se complementam na construção de um portfólio sólido”, complementa Giovanna.

Giovanna Vasconcellos é advogada do Ambiel Bonilha Advogados, com atuação nas áreas de Propriedade Intelectual, Direito do Entretenimento, Direito Digital e Inovação.

Gustavo Biglia é sócio do Ambiel Bonilha Advogados e especialista em Direito Societário. Pós-graduado em Direito Societário pela FGV/SP.